Na Serra d’Arga o carnaval iniciava com o toque do corno.
José Carlos Pires, natural da freguesia de Dem, diz que por aquelas bandas o carnaval sempre se viveu com bastante alegria e euforia. A festa começava algumas semanas antes, com o toque do corno, e só terminava no domingo gordo, com as tradicionais cegadas e a muito participada e apreciada corrida do galo.
Os “Velhos”, que mais não eram do que mascarados espontâneos que apareciam de vez em quando despertando a curiosidade de todos, causavam o reboliço na aldeia. “É fulano, é cicrano, mas a verdade é que raramente conseguiam saber quem era”.
José Carlos Pires tem boas recordações do Carnaval em Dem, memórias que fez questão de partilhar com o Jornal C, numa conversa na Quinta d’Arga, unidade hoteleira de que é proprietário e que este ano vai reviver com os clientes algumas destas tradições.
O toque do corno
O toque do corno no entrudo era um dos momentos mais esperados e apreciados do carnaval pelos mais jovens e tinha lugar uns 15 dias antes do entrudo.
“Os jovens da freguesia reuniam-se todos por lugares, formavam grupos, e todas as noites havia o toque do corno. Para além do corno os mais novos levavam também latas e outras coisas que fizessem barulho e ia-se assustar o entrudo. Era uma tradição muito engraçada e envolvia até uma certa rivalidade porque o objetivo era que um determinado grupo de jovens, pertencente a um lugar da freguesia, conseguisse invadir outro lugar sem ser invadido”.
A grande rivalidade, recorda José Carlos Pires, era entre os jovens do Lugar da Aldeia e os da Chão do Porto.
“Nesse tempo, por volta dos anos 70, havia muita miudagem e muitos jovens por estas bandas e havia até uma certa rivalidade entre uns lugares e outros”.
Normalmente os grupos de jovens saiam depois de jantar e em bando iam invadir um outro lugar. Ganhava quem conseguisse invadir o território vizinho e ao mesmo tempo proteger o seu território, explica José Carlos.
“Que conseguisse entrar e tocar o corno em primeiro lugar durante um determinado tempo sem ser apanhado pelo grupo rival era considerado o grande vencedor”.
Mas a tarefa não era fácil, recorda José Carlos, “às vezes até nos pegávamos e lutávamos no meio do monte para proteger o nosso território ou tentar invadir o dos outros. Era uma barulheira infernal, com aquelas latas todas a bater, tachos panelas, tudo o que fazia barulho porque a ideia era assustar o entrudo”, recorda.
No dia seguinte era outra diversão contar na escola o que se tinha passado e quem eram os vencedores.
Nos dois últimos anos os jovens da freguesia reativaram esta tradição proporcionando aos habitantes da freguesia momentos de grande diversão.
Para mostrar a quem não é da freguesia o que era a tradição do toque do corno, a Tasca da Quintinha vai recriar este momento no próximo dia 22.
“Vamos para as ruas da freguesias, para os locais mais escuros, tentar assustar o entrudo. Acho que vai ser divertido e era bom que as pessoas participassem”.
As cegadas e a corrida do galo
As cegadas, protagonizadas por grupos de pessoas da freguesia, eram outro dos momentos altos do Entrudo em Dem. Todos os anos se realizavam, salvo se tivesse morrido alguém na freguesia ou tivesse acontecido algo menos bom, e constituíam momentos de grande diversão e galhofa.
Eram as chamadas rondas que reuniam dezenas e dezenas de pessoas dos vários lugares.
“Estamos a falar de uma tradição que ainda hoje se mantem e que quase todos os anos se realiza. Antigamente era mais participada porque envolvia também a corrida do galo”.
Sobre a corrida do galo que se realizava no domingo gordo, José Carlos conta que existiam dois tipos. “Lembro-me que havia uma que consistia em enterrar um galo com a cabeça de fora e depois vendavam o participante, obrigavam-no a andar à roda e o objetivo era que a pessoa acertasse na cabeça do galo. Quem conseguisse acertar ganhava o galo”.
A outra versão, “muito mais engraçada e menos violenta”, consistia em pendurar vários cântaros numa corda e dentro deles colocar várias coisas, entre elas um galo.
“Numa corda, unida por dois mastros, eram pendurados vários cântaros e dentro deles eram colocadas as coisas mais hilariantes. Nuns punham terra, noutros farinha, noutro água, noutro um gato, e só num, que ninguém sabia qual era, é que estava o galo. Os participantes eram vendados e meios tontos tinham que acertar, com uma vara, nos cântaros, parti-los e ver o que saia de lá. Era muito divertido porque às vezes saiam as coisas mais estranhas e era uma risota. O pessoal que estava de fora ia dando uma ajudinha aos participantes para estes conseguirem partir o cântaro. Quem acertasse no cântaro certo ganhava o galo”.
O galo acabava na panelas de uma qualquer tasca da freguesia numa patuscada de amigos.
“O pessoal juntava-se numa das tabernas da freguesia, geralmente no Moisés, onde cozinhavam o galo e a festa continuava pela noite dentro”, recorda.
As cegadas ou rondas, ainda que proibidas pelo Estado Novo, sempre se realizaram na freguesia de Dem. Era uma espécie de um corso carnavalesco que integrava um parte teatral. “As pessoas mascaravam-se de qualquer coisa e faziam sátiras a outras pessoas ou entidades. A ideia era gozar com qualquer coisa e à volta disso fazer-se um grande teatro”.
“Mais do que hoje, antigamente as pessoas mascaravam-se às escondidas e a finalidade era conseguirem fizer todo o percurso, que começava em Pedras Frias, sem serem descobertas. O desfile começava em Pedras Frias, depois passava pela Boucinha e apanhava o pessoal de lá, ia a Aldeia buscar os de Aldeia e depois apanhava os últimos na Chão do Porto. Quando o pessoal estava todos reunido iam até aos Carejos, uma espécie de anfiteatro natural onde estava reunida todas a população da freguesia para ver os mascarados”.
José Carlos recorda que este era o grande momento porque era nesta altura que as pessoas tiravam as máscaras e davam a conhecer a sua identidade.
“Nem imagina as surpresas. Eu lembro-me de casos em que o próprio marido ficava abismado ao constatar que determinada máscara era a esposa e vice-versa. Outras pessoas juravam a pés juntos que era fulano ou cicrano e qual não era o seu espanto era outra pessoa que eles nem imaginavam. Eram momentos extraordinários em que apesar das brincadeiras havia muito respeito pelas pessoas e ninguém levava a mal as brincadeiras”.
A salgadeira só se abria no entrudo
As tradições gastronómicas associadas ao carnaval estão intimamente ligadas à matança do porco que acontecia nos meses frios de Novembro ou Dezembro. Depois de morto o animal, as carnes eram religiosamente selecionadas e acondicionadas na salgadeira, segundo determinado critério, e ali ficavam até ao carnaval fechadas a sete chaves como se de um tesouro se tratasse.
“Antigamente todas as casas aqui em Dem matavam o porco e era com essa carne que a família se alimentava durante o ano, acompanhado com os restantes produtos que iam colhendo, como é o caso das batatas, do feijão e das couves.
Depois do porco morto as carnes eram retiradas para fazer os enchdos e a restante era guardada na salgadeira. Era uma caixa cheia de sal onde as carnes eram dispostas por ordem, sem tocar umas nas outras, para não se estragarem”.
Até ao carnaval a salgadeira não era aberta sob pretexto algum, “nem para ir buscar sal. Só no domingo gordo é que era aberta, e do seu interior eram retiradas as partes carnes que estavam por cima, normalmente as orelheiras e os chispes que eram utilizados para fazer um cozido à moda da Serra d’Arga”.
José Carlos recorda que este era um dos dias mais fartos do ano que contrastava com os restantes em que pouco havia para juntar às batatas e ás couves.
“Era nesta altura que as pessoas tiravam a barriga de misérias e comiam o que lhes apetecia”.
Inaugurada a salgadeira, o seu conteúdo era depois gerido de forma criteriosa para que durasse o maior tempo possível.
“A salgadeira era de facto o sustento das famílias e era vista como uma espécie de cofre forte das casas. Não era qualquer pessoa que tinha acesso a ela e só os entendidos é que podiam ir lá mexer”, explica.
José Carlos recorda que a seguir vinha a quaresma e as pessoas normalmente guardavam jejum. “Talvez por isso o domingo gordo fosse aproveitado para armazenar algumas energias até á páscoa. Lembro-me que nesse dia as pessoas comiam muito mais do que o normal”.
Os Velhos
Os velhos eram os mascarados que apareciam espontaneamente na freguesia e andavam a divertir as pessoas. Chamavam-se “os velhos” devido ao seu aspeto.
“Normalmente as pessoas mascaravam-se de velhos, com marrecas e paus e por isso eram chamados os velhos. De vez em quando lá aparecia um ou outro e todos tentavam adivinhar quem era. Raramente se acertava e às vezes comentava-se com a própria pessoa se seria fulano ou cicrano. Mas ninguém dizia nada e era muito engraçado. Lembro-me de estar a comer o tradicional cozido e alguém gritar: olha o velho, olha o velho, chegou o velho, olha que velho tão bonito…”.
Essas pessoas apareciam espontaneamente, faziam as suas brincadeiras e depois desapareciam. “Era uma mística muito engraçada tentar adivinhar quem estava por detrás das máscaras”.
José Carlos Pires recorda que antigamente, a miudagem e os jovens, 15 dias antes do carnaval já quase não dormia. “Era um grande entusiasmo, as pessoas fervilhavam com aquilo”.
São estas vivencias simples, mas com um grande significado, que a organização do Entrudo na Serra d’Arga pretende trazer à memória e ao conhecimento das gerações mais jovens. “É para isso que estamos a trabalhar mas é preciso que as pessoas participem e se juntem a nós neste carnaval”.