Na passagem do centenário do nascimento de António José Saraiva (1917-1993), historiador e crítico da Literatura, professor, ensaísta, e um dos vultos maiores do pensamento crítico do século XX português, a Casa da Eira, em Lanhelas, promove uma exposição bibliográfica e debate com vista a sinalizar as linhas e os desafios mais duradouros e perturbantes da sua obra e da sua inconfundível personalidade e intervenção cívica.
E assim, com esta iniciativa, o distrito de Viana do Castelo integra o ciclo de homenagens que o país consagra ao autor de livros tão monumentais ou significativos como História da Cultura em Portugal (I, II e III 1950-1962), Dicionário Crítico de algumas ideias e palavras correntes (1960), Inquisição e Cristãos Novos (1969), Maio e a crise da civilização burguesa (1970), Filhos de Saturno (1980), Tertúlia Ocidental, estudos sobre a geração de 70 (1990), entre outras dezenas de obras e escritos. Alguns dos quais de forte impacto público, a suscitarem intensos debates no campo literário e político, e a revelarem um exímio e corajoso polemista. E toda essa produção textual sempre vazada numa linguagem vernácula, de uma equilibrada luminosidade estética e de um transparente e eficaz pendor didáctico-reflexivo.
Homenagem devida deste distrito, já que o então jovem historiador e ensaísta, após uma breve experiência lectiva na Universidade de Lisboa (1941-1943) e de uma primeira manifestação de destemor e rebeldia institucional que lhe mutilou a carreira a esse nível académico, exerceu, entre 1945 e 1949, funções docentes no Liceu Gonçalo Velho (actual Escola Secundária de Santa Maria Maior), da cidade capital do Alto Minho. E é de salientar que A. J. Saraiva era um docente já altamente credenciado no plano universitário, na sequência de estudos que revalorizaram e conferiram uma outra actualidade às obras de autores quinhentistas de grande nomeada como Bernardim Ribeiro e Gil Vicente. Investigações que indiciavam a sua vasta cultura sócio-histórica e filosófica, como um dúctil domínio da língua e uma ímpar sagacidade analítica do facto literário.
Assim em Viana, onde o intrépido dinamizador de consciências viveu a sua primeira experiência de “exílio”, pôde orientar um vasto número de jovens do Alto Minho na exploração dos segredos e tesouros de diferenciados territórios líricos, dramáticos e épicos da nossa Literatura. Como acompanhá-los na aventura de descobrir e questionar os mais densos e cintilantes complexos ideológicos do pensamento nacional. E, quem sabe, alguns desses discípulos ainda sobrevivam e possam agora testemunhar essa oportunidade que a escola e a sorte um dia lhes concedeu.
Na cidade do Lima, no quadro da lição “de sapiência” do ano lectivo de 1946-1947 – ano de inauguração do novo e belo edifício escolar que tanta personalidade arquitectónica garantiu àquele arrabalde urbano da Quinta dos Quesados -, o jovem Saraiva, escolar que não ignorava as exigências do ofício, expôs o essencial do que pensava sobre a questão do ensino e a urgência em desenvolver uma pedagogia activa, renovada e experimental, tendo em mente “a igualdade e liberdade pela cultura”. Temática que desde cedo o atraiu e logo deu a conhecer em diferentes textos publicados na revista Seara Nova (1945). O programa, densamente elaborado, desenhado de um ângulo fortemente crítico e sociológico, defendia uma imperativa vivência democrática no quotidiano da vida académica, obviamente irreconciliável com a ordem social e política vigentes.
Uma súmula dessa memorável palestra vianense será nesse mesmo ano editada na forma de um opúsculo intitulado A Escola, problema central da nação. Não será, pois, excessivo considerar que AJS deve ser visto como uma das mais insignes personalidades intelectuais que passou por Viana do Castelo. Que aí viveu e que aí procurou insuflar energias novas ao corpo docente e discente da sua escola mais tradicional e prestigiada.
No seu mais amplo espaço de cidadania, aí se envolveu ainda, directamente, na vida política do país em aliança com os trabalhadores e outros cidadãos que, em 1949, deram apoio ao general Norton de Matos, de naturalidade limiana, na sua campanha eleitoral para a Presidência da República. No contexto desse empenhamento cívico, quando Saraiva gozava já nos sectores de oposição política mais aguerrida, nomeadamente no interior do PCP, do estatuto de mentor, isto é, de guia intelectual. Atitude que lhe veio a custar bem caro: meses de prisão, a proibição de vários livros publicados e o afastamento compulsivo da função pública e do ensino em todos os seus graus e modalidades. Seguindo-se dez anos de isolamento beneditino, um solitário período de árduas pesquisas, de escrita continuada e de uma obra que se ia avolumando graças à fidelidade de um público exigente que lhe assegurava a relevância pública e o sustento familiar. Mas também acumulando um enorme desgaste psíquico agravado pela recorrente hostilidade do regime e pelos insultos e ameaças emitidos pelos seus mais rudes vigilantes e prosélitos.
Coagido finalmente ao exílio no exterior, entre 1959 e 1975, de início prosseguiu em Paris o seu trabalho como investigador ligado ao Collège de France e a seguir integrou o Centre National de la Recherche Scientifique. Numa metrópole nem sempre amistosa, sentiu aí a carência dos laços familiares e a agressividade das diversas linhas da oposição ao regime português que lá se digladiavam. Como ainda lhe faltava a atmosfera de uma escola e o diálogo pedagógico que tanto apreciava e que tão vibrante análise crítica lhe havia inspirado.
Vivência, por fim, em parte recuperada, após concurso internacional com o regresso ao ensino universitário na Holanda e a direcção da Secção de Estudos Portugueses da Universidade de Amesterdão (1970-1974). Tempos, contudo, por razões diversas, ainda sentimental e profissionalmente difíceis. No conjunto deste longo período de expatriação, desfrutando no entanto, de múltiplas experiências políticas, culturais e sociais. E do mesmo passo, no contacto com as comunidades emigrantes, com a ligação a círculos de pensamento de um rigoroso escrutínio teórico e preconizando outros modelos de pedagogia, com a descoberta de outras fontes de informação e com as elucidativas e desanimadoras visitas à URSS, todo esse novo mundo vindo a permitir-lhe uma profunda renovação de padrões críticos, de militância política e de valores para a vida.
No regresso a Portugal, após a revolta do 25 de Abril de 1974 e o colapso do Estado Novo, a sua reintegração no sistema de ensino de onde havia sido banido em 1949 pela governação ditatorial salazarista (de início na Universidade Nova e depois na Universidade de Lisboa), e após os acontecimentos que provocaram a descolonização e a reconversão do sistema político no sentido de uma república liberal, Saraiva assumiu o papel ingrato e simultaneamente grandioso de consciência crítica da nação. Sobretudo quando o país se viu na iminência de ver destruído o modo de vida de amplos sectores populacionais, aniquilada a sua configuração simbólica e, in fine, ameaçado de vir a soçobrar numa ditadura de sinal totalitário. Desde aí, a teorização dos ideais liberais matizados por uma ética muito singular de pendor anarquizante e a defesa da frugalidade existencial e dos ideais ambientalistas – de que a revista Raiz e Utopia que patrocinou viria de certa forma a assumir na viragem dos anos 70 para a década seguinte -, definiram o essencial do seu activo e categórico percurso cívico e cultural.
Convém registar que Saraiva foi um profícuo colaborador de jornais e revistas de diferente âmbito temático e com públicos diferenciados. Como sempre foi muito solicitado a prestar testemunho e a dar à grande imprensa várias dezenas de longas entrevistas. Ao nível da alta cultura são de destacar as suas colaborações, entre outras, para as revistas Litoral, Seara Nova, Vértice, Les Temps Modernes, Annales ESC, Poétique, Critério. Com a recente publicação das suas correspondências (com Óscar Lopes, com Luísa da Costa e com Teresa Rita Lopes, todos criadores literários e os elementos mais chegados do seu círculo de amizades), a sua imagem de intelectual insubmisso, evidenciada nos dramas de uma existência sempre em transe especulativo e sempre inquieta, ganha até uma insuspeita aura romântica e uma outra espessura humana.