Se é verdade que todos os caminhos vão dar a Roma, não é menos verdade que quase todos vão dar a Santiago de Compostela. A pé ou de bicicleta, de burro ou a cavalo, o que interessa é chegar lá.
Pelo Caminho, mais ou menos longo, cruzam-se histórias, partilham-se experiências, conhecem-se pessoas, fazem-se amigos. Diz quem já o fez, que é uma experiência única e que, depois de feito, ninguém volta o mesmo. Que há uma pessoa antes e uma outra depois de fazer o caminho.
Anualmente, milhares de peregrinos de dezenas de nacionalidades, cristãos ou de outras religiões ou até ateus, percorrem o Caminho, uma experiência que tem tanto de místico como de aventura, um teste aos limites físicos e psicológicos de cada um. E mesmo que partam sem companhia, é impossível fazer o Caminho sozinho.
A cada passo que se dá o contato humano é evidente, marcando para sempre uma experiência difícil de apagar. Mesmo sem se darem conta, os momentos de partilha são tantos que ficam como que uma marca no coração. Momentos inesquecíveis que culminam com um sentimento de paz á chegada à Praça de Santiago.
Um sentimento comum, que só pode ser verdadeiro…
História do Caminho
Devem ter começado por volta do século IX as peregrinações a Santiago de Compostela. Monarcas, nobres, cavaleiros e senhores afluíam a Santiago para venerar as relíquias do apóstolo Santiago Maior, cujo sepulcro se encontrava na catedral.
Esta peregrinação foi uma das mais concorridas da Europa Medieval, cuja importância só era superada pela via Francigena (com destino a Roma) e Jerusalém, sendo concedida indulgência a quem a fizesse. A cidade tornou-se num dos principais centros de peregrinação cristã e é por esta altura que surgem os primeiros relatos de peregrinos que viajaram a Compostela.
No século XII é publicado o primeiro guia do peregrino (do caminho Francês). A partir do século XIV, o caminho entra em declive por causa da peste negra e o declive acentuasse mais tarde com a Cisão da Cristandade (entre protestantes e católicos).
Durante os séculos XVII e XVIII, as redes de comunicação são melhoradas e o Caminho recupera, mas volta a ter um declínio no século XIX com a Revolução Industrial e os descobrimentos científicos e intelectuais.
Depois de vários séculos relativamente esquecida, na década de 80 a popularidade da peregrinação tem vindo a crescer substancialmente embora uma grande parte das pessoas que fazem o caminho não o façam por motivos religiosos. Assim, depois de séculos em que pouco mais foi que uma memória do passado, a partir dos anos 80, o Caminho tornou-se num itinerário espiritual e cultural de primeira linha, e é percorrido por milhares de pessoas todos os anos.
Foi declarado Primeiro Itinerário Cultural Europeu em 1987 e Património da Humanidade (em Espanha em 1993, e em França em
Espírito religioso, misticismo, busca interior, turismo, desporto, ou apenas uma grande aventura, são alguns dos motivos que, segundo os peregrinos, os levaram a Santiago. Os caminhos espalham-se por toda a Europa e vão entroncar nos caminhos espanhóis.1998).
Com excepção das várias vias do Caminho Português e da Caminho da Prata, do qual uma variante atravessava o nordeste de Portugal, que tem origem a sul, e do Caminho Inglês que vinha do norte, a maior parte liga-se ao Caminho Francês, cuja rota mais popular entra em Espanha na zona de Pamplona (Roncesvalles), e se encontra com as restantes em Puente la Reina seguindo depois ao longo do norte de Espanha. O Caminho é geralmente feito a pé, mas também pode ser feito de bicicleta, a cavalo, ou até de burro.
Algumas curiosidades
Santiago é por excelência o padroeiro da península Ibérica. Segundo a lenda católica foi o apóstolo que procedeu à sua evangelização.
Os reis portugueses demonstraram desde sempre uma grande devoção pelo santo. D. Afonso II peregrinou a Compostela em 1220 e em 1225 foi a vez da rainha Santa Isabel.
OS CAMINHOS
Existem pelo menos sete rotas históricas do Caminho de Santiago:
O Caminho Francês
Recebe entre outros a Via Podiensis e antes a Via Gebennensis, a partir de Saint-Jean-Pied-de-Port. Entra em Espanha por Roncesvalles, no sopé dos Pirenéus, e de lá segue por cerca de 800 quilómetros até Compostela.
O Caminho do Norte
Entra em Espanha em Irún no pais Basco e traça um percurso paralelo ao caminho Francês mas pela costa passando por San Sebastian e Santander. São cerca de 1100 quilómetros até chegar a Santiago.
O Caminho Primitivo
É provavelmente o primeiro caminho jacobeu. Sai de León e sobe para Oviedo passando entre o Caminho do Norte e o Caminho Francês.
Via de la Plata
Também conhecido como o caminho do Sudeste ou Caminho Leonês. Sai de Sevilha e traça uma linha vertical paralela a Portugal. Antes de chegar a Zamora existem duas alternativas: uma primeira contorna o nosso pais, e uma segunda entra em Portugal em Alcanices. Passa por Bragança e junta-se de novo ao Caminho Leonês em Ourense.
Rota Marítimo Fluvial
Entra em Espanha pela Ria de Arousa e pelo Rio Ulla. Em Padrón junta-se ao caminho Português. Esta rota pretende recriar a viagem feita pelos discípulos até Santiago com o corpo do apóstolo depois do seu martírio.
O Caminho Inglês
Entra em Espanha por mar nos portos de Ferrol ou a Coruña e segue numa linha vertical para Santiago.
O Caminho Português
Com várias alternativas a partir de Lisboa, temos o caminho Caminho Português (principal) (+-600 km a partir de Lisboa / 250Km a partir do Porto).
Trajecto a partir de Lisboa: Alhandra, Azambuja, Santarém, Golegã, Tomar, Alvaiazere, Rabaçal, Coimbra, Mealhada, Águeda, Albergaria-a-Velha, Oliveira de Azemeis, Grijó, Porto.
Trajecto a partir do Porto: Vairão, Rates, Barcelos, Ponte de Lima, Rubiães, Valença, Tui, Redondela, Pontevedra, Caldas de Reis, Padrón, Santiago de Compostela.
Caminho Português pela Costa (+-250 km)
Trajecto a partir do Porto pela costa: Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Esposende, Viana do Castelo, Caminha, La Guardia, Baiona, Vigo, Redondela e caminho comum ao Português.
SÍMBOLOS DO PEREGRINO
Concha ou Vieira – Na simbologia jacobeia, as conchas estão associadas a um episódio lendário. Diz a lenda que um cavaleiro das Terras da Maia viu ao lago da costa uma barca que transportava o corpo do Apóstolo Tiago.
Num ápice, o seu cavalo precipitou-se pelo mau adentro em direção á barca. Pouco depois, ambos emergiram das águas do Atlântico e regressaram a terra são e salvos, cobertos de conchas.
Hoje, sob a forma de recordação, serve também como comprovativo da viagem a Santiago e da chegada ao santuário. Os peregrino levam-na pendurada no pescoço, utilizando-a para beber água por onde passam.
A Cruz de Santiago – É o símbolo da Ordem Militar e Religiosa de Santiago, fundada no ano de 1160 no reino de Leão por 12 cavaleiros no reinado de D. Fernando II, para defender os peregrinos que iam ao sepulcro do Apóstolo Santiago em Compostela, a fim de receber o jubileu atravessando a Porta Santa da catedral, como está descrito no Códice Calixtino.
O Cajado – É o símbolo por excelência do peregrino. Serve de apoio e de defesa ao longo do percurso. Também é uma forma de aliviar a fadiga, pois o caminho é longo e cansativo e todas as ajudas são bem vindas, seja para o terreno plano ou para a subida de montes.
A Cabaça – Os peregrinos usavam-na pendurada ao cajado e era utilizada para transportar líquidos, principalmente água. Nos dias de hoje, a cabaça foi substituída pelo cantil.
A estrela – A estrela é fonte de luz e farol na escuridão. A Via Láctea, constituída por um número incontável de estrelas, é também conhecida entre o povo com a estrada de Santiago. Simboliza pois, o caminho dos peregrinos.
As pedras – As pedras são símbolos muito marcantes do Caminho. Frequentemente são encontrados montinhos de pedras, às vezes em grande quantidade, em locais específicos do Caminho, ou ainda, pedras em cima dos marcos de distância ou simplesmente à margem dos caminhos. Como simbolismo, muitos peregrinos carregam suas próprias pedras para serem depositadas na Cruz de Ferro, no alto do Monte Irago, em León. Essas pedras significam problemas, coisas negativas, que o peregrino deixa na cruz para, daí em diante, ser uma nova pessoa, com uma nova atitude de vida.
Nunca pensei conseguir lá chegar
Há cerca de um ano Sandra Rego, natural de Caminha, decidiu fazer o caminho a pé até Santiago de Compostela, um desafio que impôs a si própria, mas que na verdade nunca pensou conseguir concretizar.
A pouca experiência em matéria de caminhadas e a distância que separa Caminha da cidade de Santiago, assustou-a e até à hora de sair, disse sempre que não iria ser capaz.
Mas foi, e após cinco dias de caminho, Sandra e os companheiros chegaram finalmente à Catedral. Pelo caminho somaram-se inúmeras experiências. Desde pisar lodo até andar com água pela cintura, Sandra experimentou um pouco de tudo. O resultado foi uma Sandra diferente. “Há uma Sandra antes e uma Sandra depois”, afirma sem hesitar.
“Antes de fazer o caminho andei a fazer uns treinos e fui duas vezes até Santo Antão. Cheguei cansadíssima e pensei: mas como é que eu vou conseguir fazer o caminho se andei pouco mais de 20 quilómetros e estou tão cansada?”.
A resposta a esta pergunta só se tem fazendo o caminho, garante Sandra.
“A verdade é que o caminho se vai fazendo e, sem percebermos muito bem como, vamos ganhando energia à medida que vamos avançando”, explica.
Sandra e o seu grupo de amigos dormiram em albergues, “uma experiência única. São fantásticos”.
Testar os seus limites e ver até onde conseguia chegar foi o grande desafio de Sandra.
“A surpresa não foi só para mim, foi para toda a família porque ninguém pensava que eu iria conseguir e a verdade é que consegui e foi um orgulho muito grande para mim”, confessa.
O caminho até Santiago, Sandra fê-lo quase sempre debaixo de chuva mas isso, comparado com a saudade dos filhos não foi nada.
“De facto o que mais me custou foi estar aqueles dias longe deles, de não os poder levar comigo. O resto é suportável. Levei o caminho tolo a pensar que um dia eles têm que fazer o caminho, viver a experiência”.
Uma experiência que Sandra jamais vai esquecer até porque, como a própria faz questão de afirmar, “há uma Sandra antes e uma Sandra depois”.
“Eu era uma pessoa que tinha muito medo a bichinhos, detestava pisar lodos e coisas do género. No caminho apanhámos muita chuva e cheguei a andar com a água pela cintura durante duas horas porque o rio, devido à chuva transbordou. Tive que andar descalça, nem sei o que pisei. Se me dissessem que eu ia andar descalça por sítios que não conhecia eu dizia que era impossível, impensável”.
Depois de ter ido a primeira vez, Sandra acredita que esta é uma experiência para repetir.
“Gostava de fazer outros caminhos, adorava fazer o Francês, talvez faça brevemente desde o Sebreiro, que é a parte galega do caminho Francês, até Santiago.”
Das muitas histórias que foi acumulando ao longo do percurso até Santiago, Sandra faz questão de partilhar connosco uma que a marcou.
“Lembro-me de ter visto uma jovem agarrada aos pés cheios de bolhas, sentada completamente só numa cadeira a chorar. Foi uma imagem forte que me marcou porque ela, apesar de ter os pés em ferida, não estava disposta a desistir. Dizia para si eu vou conseguir, eu vou chegar de certeza absoluta”.
A chegada a Santiago foi outro momento inesquecível.
“Foi uma grande emoção e uma sensação muito grande de dever cumprido. Vale a pena”.
Tentar levar pouca roupa e uns sapatos para trocar é o conselho que Sandra deixa a quem quiser fazer o caminho até Santiago.
“Só devem levar o básico porque, quanto mais levarem, mais têm que carregar”.
Uma experiência única
Natural de Gondarém Vila Nova de Cerveira, Berto Cunha já perdeu a conta à quantidade de vezes que fez o caminho até Santiago. Desde o Francês, um dos mais mais longos e mais bonitos, até ao Português, o de Finisterra ou o da Costa, são poucos os que ainda não conhece.
O caminho até Santiago desde a sua casa em Gondarém, cerca de 130 quilómetros, já o fez pelo menos umas seis vezes. Depois disso fez o Francês com início em Saint-Jean-Pied-de-Port, entre outros.
Este ano vai voltar, em principio com um amigo que está com um problema de saúde grave. “É um pedido que não posso recusar”, explica.
O caminho Francês, numa extensão de quase mil quilómetros, foi feito em várias etapas, como contou ao Jornal C.
“Fizemos o caminho Francês por etapas, foram 980 quilómetros. Depois disso já fizemos o de Finisterra e o de Ferrol. Este ano queremos fazer o da Vía de da Plata desde Sevilha. É outro que teremos que fazer por etapas uma vez que é muito longo”.
Sempre na companhia da esposa, a primeira vez que fez o caminho para Santiago, Berto Cunha diz que foi a vertente religiosa que o motivou.
“Atualmente tornou-se num vicio, vamos porque gostamos muito de fazer caminhadas e é uma boa forma de fazer turismo. Vamos pela cultura, pela gastronomia e pela curiosidade de conhecer pessoas e locais”, revela.
Inicialmente o caminho era feito em grupo, com vários amigos, mas nas últimas vezes o número de pessoas tem vindo a reduzir significativamente. “Uma das razões que nos leva a fazer o caminho é a possibilidade que isso nos dá de repor as energias, e quando se vai com um grupo muito grande isso torna-se difícil. Eu gosto de ir e por vezes gosto de fazer parte do caminho de forma isolada, em silêncio. Chego a andar mais de 20 quilómetros sem falar, numa vertente mais espiritual”, confessa.
Conhecer pessoas de todo o mundo é outra das vantagens de quem faz o caminho. “Encontramos pessoas de todo o mundo, pessoas muito interessantes que nos vão contando as suas experiências e isso é fantástico. Já encontrei gente do Brasil, Dinamarca, Suécia, muitos europeus e até americanos”.
De todos os caminho a Santiago que já percorreu, Berto Cunha destaca o Francês, principalmente na sua parte galega.
“O troço que vai desde Sebreiro até Santiago é fantástico. São cerca de 150 quilómetros onde se passa por zonas lindíssimas de carvalhais, de um silêncio profundo. Foi o troço que mais me fascinou não só pela paisagem como pela gastronomia e pela cultura. Gostei tanto que voltei a fazê-lo”.
Às pessoas que estão a pensar fazer o caminho pela primeira vez, Berto Cunha deixa alguns conselhos.
“O mais importante para quem vai a pé a Santiago é o calçado. Não deve ser um calçado novo mas sim um que já esteja moldado aos pés. Depois, na mochila, não deve ir peso a mais porque isso vai provocar um cansaço maior. Outro aspeto importante é fasear muito bem o caminho. Normalmente, quem vai pela primeira vez, não deve fazer mais do que 25 quilómetros por dia”.
A roupa é outro fator a ter em conta.
“Deve ser roupa muito leve e o mínimo de peças possível. Os albergues dispõem de ótimas condições para lavar e secar a roupa e por isso não é necessário levar muita roupa. Para ter uma ideia, a última caminhada que fiz de cinco dias, levei 2 t-shirts, 2 polos e um par de calças, um segundo par de ténis e uns chinelos”.
Apesar de ficar muito poucas vezes em albergues, Berto Cunha conhece-os bem e diz que a maioria são muito bons. “Dispõem de tudo o que é necessário para proporcionar uma boa estadia”, garante.
À exceção dos meses de verão, Julho e Agosto, por causa do calor, qualquer altura é boa para por pés ao caminho.
“Nos meses de mais calor é insuportável porque os pés vão inchar e isso dificulta muito. A partir de meio de julho e até meados de setembro, não aconselho”.
Para quem sai de Caminha onde já pode carimbar o passaporte de peregrino, são mais ou menos seis dias de caminho. A primeira paragem é em Valença onde existe um albergue e a etapa seguinte faz-se até ao Porrinho com nova paragem. Depois segue-se Redondela e a seguir Pontevedra. As duas últimas etapas são Padron e finalmente Santiago. Uma vez chegados a Santiago, a primeira coisa a fazer é visitar a catedral e dar uma abraço ao santo.
“É da praxe e mesmo aqueles que não vão com espírito religioso ao chegar lá sentem algo especial que não se define por palavras. É uma espécie de emoção que se mistura com a sensação de dever cumprido. Para se perceber é preciso ir pelo menos uma vez”.
“Uma experiência única” é como Berto Cunha define uma peregrinação a pé a Santiago.
“Todas as pessoas deviam experimentar pelo menos uma vez, tenho a certeza que jamais vão esquecer e vão querer repetir”, garante.
À ESPERA DOS PEREGRINOS
O caminho passa-lhe mesmo em frente à soleira da porta e, para seguirem viagem, os peregrinos são obrigados a subir as escadas de acesso à sua casa situada na freguesia de Lanhelas.
Sentada numa cadeira, a Tina, como gosta de ser chamada, passa os dias a ver passar os peregrinos que vai cumprimentando à passagem. Não tem conta a quantidade de portugueses e estrangeiros que por ali já passaram e nas gavetas, Tina vai colecionando fotografias, recortes de jornais e pequenas lembranças que os peregrinos fazem questão de lhe ir deixando.
A casa, que herdou dos avós, foi no passado um albergue de peregrinos. A comprová-lo, Tina mostra-nos alguns desenhos esculpidos nas pedras. “Olhe aqui é uma cruz e ali uma cabaça”, explica-nos.
Os dias desta habitante de Lanhelas são passados à espera dos peregrinos e, se por qualquer motivo ela não está à porta, eles estranham.
“No outro dia passaram aqui uns estrangeiros que tinham visto a minha foto na internet. Quando eles passaram eu estava lá para dentro e como não me viram foram logo perguntar aos vizinhos se estavam a seguir o caminho certo porque não me estavam a ver”, conta.
À medida que vão passando, a pé ou de bicicleta, os peregrinos dão-se a conhecer e nem que seja por breves momentos, param para dois dedos de conversa ou para tirar uma fotografia.
“Normalmente eles param e metem-se comigo. Às vezes contamos anedotas, elas dizem-me de onde vêm e eu desejo-lhes um bom caminho”.
Com os estrangeiros, quando não trazem guia, Tina comunica recorrendo aos gestos. “E eles compreendem? Perguntamos – Claro que compreendem”, garante.
Dos muitos peregrinos que já lhe passaram à porta, aquele que Tina guarda melhores recordações é de um grupo oriundo dos Açores.
“Era um grupo enorme, traziam um lenços ao pescoço e com eles seguia um menino que transportava uma cruz. Cantavam e fizeram uma festa”, recorda.
O inverno rigoroso que se fez sentir diminuiu nos últimos meses o número de peregrinos mas com a chegada da Primavera “eles vão começar a aparecer”. E Tina lá vai estar à espera deles para lhes desejar “Um bom Caminho” que eles agradecem mais que não seja com um aceno de mão e um “muito obrigado”.
Dizem que este ano vai haver muita gente a peregrinar e Tina está satisfeita com essa previsão. “São eles que me ajudam a passar os dias e a combater a solidão. Tenho problemas nas pernas e não posso sair daqui, por isso eles são a minha distração”, confessa.
CAMINHA DE SANTIAGO
Projeto visa potenciar o papel de Caminha na passagem do Caminho para Santiago
Caminha de Santiago é o nome do projeto que a Câmara de Caminha está a preparar e que vai brevemente lançar com o objetivo é potenciar uma das grandes marcas do concelho, o caminho de Santiago que passa por Caminha.
Em declarações ao Jornal C, Miguel Alves, presidente da Câmara de Caminha, explicou o que se pretende com este projeto, um projeto que visa potenciar o papel de caminha na passagem do Caminho até Santiago.
“O que nós queremos no fundo fazer é evidenciar o papel do concelho de Caminha na passagem do caminho de Santiago. A nossa ideia é fazer isso através de um ciclo de eventos de promoção turística, comercial e empresarial, quer em Santiago de Compostela, quer noutros locais”, explica.
Esta é uma iniciativa que ainda está em estudo e segundo o presidente da Câmara, “tem uma vertente turística e comercial local, uma vertente de promoção externa, uma vertente empresarial e, ligado a tudo isto, uma vertente comunicacional”.
No que toca à vertente turística, o que se pretende é elaborar um conjunto de eventos que contem com a participação de algumas figuras públicas. “Conferências com algumas personalidades que estejam ligadas à temática dos caminhos de Santiago. Podemos analisar os caminhos do ponto de vista religioso, do ponto de vista patrimonial, ou até cultural”.
Mas a ideia passa também por poder levar Caminha lá fora, explica Miguel Alves.
“É podermos levar Caminha até Santiago de Compostela através de realização de encontros institucionais ligados à gastronomia, com provas e degustação de produtos da nossa região e da nossa culinária, envolvendo os nossos empresários. Com concertos de música portugueses e galegos, enfim tudo o que posa divulgar Caminha, inserido neste temática do Caminho”.
Relativamente à vertente empresarial, o projeto pretende criar um selo de restauração. “A ideia é que os restaurantes que pretendam aderir ao projeto possam ser assinalados com esse selo”.
Ao nível da hotelaria também já foram encetados contatos, no sentido de se poderem criar, nos hotéis e residenciais dom concelho, pacotes específicos para os peregrinos.
“A ideia é podermos ter em alguns hotéis, aqueles que aderirem, uma espécie de voucher que permite a cada peregrino, saber que naquele hotel se presta por exemplo assistência de enfermagem, o que por vezes é essencial por causa dos pés, dos músculos e das pernas que ficam bastante castigados neste percurso; determinado tipo de prato com determinadas características energéticas, entre outros serviços”.
Em conjunto com tudo isto, Miguel Alves defende que é importante melhorar a sinalética dos caminhos e pensar de que modo se pode valorizar a paragem dos peregrinos em Caminha.
“Caminha é um sítio que temos que sinalizar como local de paragem obrigatório não só pela sua beleza, mas porque permite no dia seguinte o atravessamento do Minho ou a ligação da caminhada até Valença. Queremos que Caminha seja o fim de uma etapa de 20 ou 30 quilómetros e que os peregrinos cheguem aqui e fiquem”.
Melhorar as condições do Albergue de Caminha é outro dos objetivos deste projeto.
“Estamos a falar de um conjunto de oportunidades que têm a ver com uma característica do nosso território que, apesar de nem sempre o termos sabido fazer, temos que saber aproveitar”.
Para Miguel Alves, Caminha de Santiago é um projeto ambicioso que pretende aproveitar o que de melhor temos. “Não vale a pena criarmos uma estratégia de promoção da nossa terra que vá ao encontro de alguma artificialidade, ou repetir aquilo que os outros já fazem com qualidade. Temos que ir à procura daquilo que são as nossas características. Nós temos o caminho de Santiago a passar por aqui e temos que saber aproveitar esse potencial”.
EM 2013, MAIS DE 800 PEREGRINOS PERNOITARAM NO ALBERGUE DE CAMINHA
Inaugurado a 14 de Abril de 2012, o Albergue de Caminha é um espaço de apoio aos peregrinos de Santiago. A funcionar no complexo da Santa Casa da Misericórdia de Caminha, o albergue possui um dormitório com 32 camas, lavandaria, cozinha e uma sala de estar.
Gerido pela Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Viana do Castelo, o funcionamento do albergue é apoiado pela Câmara de Caminha que para além das obras de adaptação, apoia nas despesas de água e luz. A cedência do espaço foi feita, através de protocolo, pela Santa casa da Misericórdia de Caminha, proprietária do edifício.
Para pernoitar no albergue, os peregrinos pagam um valor de 5 euros mas, segundo a Associação, até ao momento tem funcionado com donativos.
A funcionar desde 2012, o albergue registou, no primeiro ano, a passagem de 489 peregrinos, um número que em 2013 aumentou cerca de 67%. Assim, em 2013, pernoitaram no albergue 817 peregrinos com destino a Santiago de Compostela.
Segundo dados fornecidos pela associação, a maioria dos peregrinos que utilizaram o albergue para pernoitar, deslocam-se a pé e são na sua maioria do sexo masculino (464 homens e 353 mulheres).
Outro dado estatístico interessante, refere-se à idade. Assim passaram pelo albergue de Caminha, peregrinos com idades compreendidas entre os 7 e 74 anos, com prevalência da faixa etária entre os 25 e os 30 anos.
Em termos de origem, prevalecem os peregrinos de Portugal (34%), sendo os restantes 536 (66%) provenientes de 40 países diferentes, sendo que os principais são: Espanha 117, Polónia 111, Alemanha 57 e Itália 57.
Peregrinos da Coreia, do Canadá, dos Estados Unidos, de vários países da Europa de Leste; México, Nova Zelandia, entre outros, também pernoitaram no albergue de Caminha.
Em termos de início de peregrinação, 755 peregrinos (92%) fizeram-no a partir de localidades portuguesas.
De salientar os 121 peregrinos que iniciaram a peregrinação em Viana do Castelo e os 20 que o fizeram a partir de Caminha.
UM CAMINHO ESPIRITUAL, RELIGIOSO E CULTURAL
Fundada em 2004 por um grupo de peregrinos, a Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Viana do Castelo, nasceu da necessidade de dar vida a um caminho situado a Noroeste do país, denominado Caminho do Atlântico. Nos últimos 10 anos, a Associação tem trabalhado no sentido de melhorar e dar a conhecer o Caminho da Costa, esquecido e quase inexistente durante muitos anos. Por este Caminho, passam anualmente mais de mil peregrinos de distintas nacionalidades com destino a Santiago de Compostela. Segundo dados da Associação, em 2013 pernoitaram no albergue de Caminha mais de 800 peregrinos, oriundos de 44 países diferentes, contra os 480 registados em 1012, um aumento de mais de 60 por cento. Em entrevista ao Jornal C, César Maciel, presidente da Direção da Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Viana do Castelo, dá a conhecer um pouco mais o trabalho desta associação que já levou a Santiago muitas dezenas de peregrinos.
Jornal C (JC) – Como e quando é que nasceu esta Associação?
César Maciel (CM) – Esta associação nasceu em 2004 pela vontade de um grupo de peregrinos que já tinham feito o Caminho e que se juntaram porque consideraram que na zona do Caminho da Costa, não havia nenhuma associação nem nenhum trabalho com vista à sua divulgação. É a partir de 2004 que se inicia esse trabalho de promoção.
JC – Que tipo de ações é que a associação tem desenvolvido com vista a essa promoção?
C.M. – Durante estes quase 10 anos, a Associação procurou, num primeiro momento, bibliografia no sentido de poder estudar o percurso do Caminho da Costa. Tivemos oportunidade de nos reunirmos com as Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais, no sentido de os informar dos respetivos traçados, e também que iriamos iniciar a sua sinalização, embora de uma forma muito rudimentar, com as famosas setas amarelas.
Durante este tempo participámos em inúmeros encontros para promover o caminho, organizámos 14 peregrinações que levaram muitos peregrinos até Santiago. Além disso fornecemos um número grande de credenciais que são utilizadas pelos peregrinos ao longo do Caminho.
JC – Depois de um interregno de muitos anos, os caminhos de Santiago voltam a ter a importância e o apogeu que alcançaram na Idade Média. A que se deve este ressurgimento?
CM – De facto a peregrinação teve uma queda acentuada durante o século XX e até antes, com as duas grandes guerras mundiais. Em Portugal só a partir dos ano 90 é que se começa a falar novamente do Caminho de Santiago. No resto da Europa, principalmente em Espanha e França, as associações surgem por volta dos anos 50 e 60, e é a partir dessa data que se começa a reavivar o espírito da peregrinação e se começa, com as famosas setas amarelas, a marcar os percurso.
Tudo isto foi um caminhar em crescendo com várias razões. Aquela que eu considero que mais contribuiu para a aparição das peregrinações foi sem dúvida o trabalho feito pelas associações.
Outro aspeto muito importante foi a peregrinação do Papa João Paulo II e as Jornadas da Juventude em 1985, bem como a Declaração da UNESCO e a classificação da Europa que trouxeram os caminhos de Santiago para o centro de todo o debate.
Todos estes fatores fizeram com que o Caminho de Santiago se tenha tornado numa espécie de marca mundial.
Para além de todas as questões históricas que referi, penso que o ressurgimento do Caminho se deve também a uma necessidade das pessoas se reencontrarem consigo próprias a descobrirem-se a si e aos outros. O Caminho de Santiago potencia tudo isso.
JC – Na sua opinião o que leva as pessoas a fazer o Caminho?
CM – Sempre que parto com um grupo para Santiago, e já o fiz muitas vezes, costumo dizer que não estou minimamente preocupado com as motivações. Eu penso que o Caminho cria as suas próprias motivações e faz com que as pessoas as descubram.
É evidente que este é um caminho espiritual, um caminho religioso, mas apesar disso é também um caminho cultural.
O Caminho de Santiago tem obviamente o seu motivo espiritual e muitas pessoas só se apercebem disso mais tarde.
JC – Muitas pessoas que fizeram o caminho a pé a Santiago garantem que isso lhe mudou a vida, que vieram diferentes. O que é que isto pode crer dizer?
CM – Na nossa vida do dia a dia damos valor a muitas coisas que depois percebemos que não têm valor nenhum. Há uma coisa que eu considero que é fundamental no peregrino, é que ele carrega às costas aquilo que precisa no dia a dia e ao fim de dois dias percebe que há coisas de que não precisa porque lhe pesa. Na nossa vida quantas vezes andamos quase de gatas a carregar coisas que não interessam? Muitas e carregamos porque a sociedade nos diz que isso é essencial. O caminho permite-nos uma outra noção da realidade, permite que nos concentremos naquilo que realmente é importante e deixe tudo o que é acessório. Essa é uma descoberta que as pessoas fazem e por isso não podem nunca vir como foram. Apesar das pessoas que fazem o caminho não se conhecerem, terem idades diferentes, profissões diferentes, todas têm um objetivo em comum: chegar lá e então todos trabalham para que isso aconteça. Existe um grande espírito de entreajuda, partilha e comunhão que na maioria das vezes não vemos no dia a dia. E isso transforma as pessoas.
JC – É verdade que mesmo que se vá sozinho nunca se faz o caminho sozinho?
CM – É impossível fazer o caminho sozinho. Porquê? Porque nós não podemos viver sozinhos, cruzamo-nos com imensas pessoas e deixamos de estar sozinhos. É curioso que às vezes nem falamos mas conhecemos aquela cara e isso cria uma espécie de energia comum que congrega as pessoas nessa peregrinação.
Isso é uma mais valia porque as pessoas, ao deixarem-se transformar por aquilo que o caminho ensina, estão a ter um novo modo de ver a vida e isso é um acrescento à vida comum.
JC – Qual é o sentimento ao chegar a Santiago?
CM – Há sentimentos distintos. Eu já presenciei momentos de uma alegria que se manifesta através do riso, como de uma alegria que se manifesta através do choro compulsivo. Depende de todo o ambiente que foi criado durante o percurso, o que é que a pessoa ao chegar lá considera que atingiu. Ha pessoas que pensam que nunca iriam conseguir chegar e, ao chegarem, experimentam uma grande sensação de alegria e ao mesmo tempo transformação e auto-realização. Isto manifesta-se de formas distintas, mas normalmente é um momento de alegria.
Quem chega a Santiago vê pessoas a chegarem de todos os lados e a concentrarem-se naquele espaço. Isso cria um espírito de peregrinação que faz transbordar toda a alegria.
JC – A vossa associação está prestes a completar 10 anos, desde então o número de peregrinos a fazerem o caminho de Santiago tem aumentado?
CM – Sim de facto desde 2004 o número de peregrinos a fazer o Caminho da Costa tem aumentado. Em 2004, quando iniciamos este trabalho, não existia caminho nem peregrinos. Essa é uma questão na nossa perspectiva fundamental.
Neste momento podemos dizer que no Caminho da Costa, a informação mais fidedigna que nós podemos ter, tem a ver com o uso do albergue de peregrinos aqui em Caminha.
No ano de 2012 pernoitaram no albergue de Caminha 489 peregrinos e em 2013, 817 peregrinos. Quer dizer que houve um aumento de mais 60 por cento de peregrinos que passaram por aqui. De referir também que nestes 800 peregrinos estão representados 44 países o que permite perceber um pouco a dinâmica que se cria à volta do caminho.
Além deste números referentes ao albergue, importa referir que todos os anos estamos a fornecer cada vez mais credencias a peregrinos de muitos lados.
JC – Normalmente onde é que as pessoas iniciam o caminho?
CM – Depende do objetivo e dos dias que as pessoas têm disponíveis. Há pessoas que têm pouco tempo e iniciam o percurso em Tui, mas também há os peregrinos do centro da Europa que iniciam o percurso no Porto e depois fazem o caminho da costa passando naturalmente por Caminha.
JC – Vamos agora dar alguns conselhos a quem esteja a pensar fazer o Caminho pela primeira vez. Existem algumas regras básicas a seguir?
CM – As pessoas podem sempre pedir à associação todo o tipo de informações que queiram ou esclarecer dúvidas. Há no entanto algumas questões básicas que as pessoas que vão fazer o Caminho têm que ter em conta. Em primeiro lugar as pessoas têm que ter noção daquilo que vão fazer e por isso é importante que tenham um mínimo de preparação física. Depois é fundamental calçado e roupa adequada à peregrinação. Além disso devem organizar uma mochila que não pode ter peso superior a 10 por cento do peso da pessoa. É evidente que tudo isto depende da condição física de cada um, mas a base é esta. É importante estruturar muito bem o tempo e o percurso que quer fazer e definir as etapas tendo em conta as montanhas, por causa do esforço físico.
JC – Qual é a melhor altura para fazer o caminho?
CM – Na minha opinião a melhor altura é a partir de Abril até Junho e depois em setembro e Outubro. Mas este Caminho pode-se fazer em qualquer altura do ao porque não estamos a falar de um Caminho Francês, em que as temperaturas quer negativas, quer positivas podem atingir valores muitos altos. Dependendo da resistência de cada um, digamos que é um Caminho que se pode fazer praticamente durante todo o ano.