[Na primeira parte dos “Actos de Paulo e Técla”: Santa Técla, apaixona-se por São Paulo, apenas ao ouvir a sua voz, que escuta durante três dias e três noites, através de uma janela da sua casa, vizinha da casa onde Paulo terá pregado em Icónio. Desgostoso e despeitado, o noivo, Tamíris, encontra os companheiros de viagem de Paulo, através de quem procura obter informações sobre este, oferecendo a ambos um laudo jantar, no fim do qual se segue o seguinte diálogo:]
Disseram então a Tamíris, Demas e Hermogenes, a uma só voz:
– “Mas porque é que estás triste? Leva-o ao Governador Cestilius e denuncia-o como sedutor de multidões com essas ideias novas dos cristãos! Desta forma ele será destruído e tu terás Tecla como tua mulher. Quanto a nós, vamos-te ensinar o que é a ressurreição que ele diz que há de vir, que aconteceu já nos filhos que temos e que em nós acontecerá quando reconhecermos o verdadeiro Deus”.
Ao ouvi-los falar assim Tamíris ficou possuído de ciúme e cólera.
Ao raiar da aurora dirigiu-se a casa de Onesiphorus, acompanhado de magistrados, oficiais e de uma turba de gente, armada com paus e espadas.
Quando chegaram a casa de Onesiphorus, Tamíris colérico, vendo Paulo disse-lhe:
– “Tu seduziste a nossa cidade de Icónio, corrompeste o coração da minha noiva, de tal forma que ela já não quer casar comigo. Vamos levar-te ao Governados Cestilius para que ele fique a saber o que andas aqui a fazer.”
A multidão uniu-se a Tamíris e numa só voz clamou:
– “Levem o bruxo, porque ele seduziu todas as mulheres da cidade.”
Levaram Paulo à presença do Governador, perante quem Tamíris vociferou:
– “Próconsul, nós não sabemos de onde vem este homem que impede as jovens raparigas de se casarem, tornando as virgens celibatárias. Pergunta-lhe de onde é que vem e porque veio aqui ensinar o que anda a ensinar”.
Acrescentaram Demas e Hermogenes:
– “ Ele é um cristão, pelo que o podes condenar já.”
O Governador, porém, ateve-se ao pedido por Tamíris e perguntou a Paulo:
– “Quem és tu? O que é que andas a ensinar? Não é ligeira a acusação que apresentam contra ti.”
Paulo, elevando a sua voz respondeu:
– “Já que me perguntas sobre o que ensino, então ouve Governador:
– “O Deus vivo, o Deus dos castigos, o Deus possessivo, o Deus que se basta a si próprio, desejando a salvação dos homens, enviou-me para os tirar da perdição e da impureza, de toda a volúpia e da morte, de forma a que deixem de pecar.
– Deus também enviou o seu próprio filho; é este Deus que eu anuncio; eu ensino os homens a confiarem-lhe as suas esperanças; só Ele teve piedade deste mundo que vive erro, de forma a que os homens não fiquem mais sujeitos à condenação no julgamento final, mas, ao invés, alcancem a fé e a crença de Deus. Ensino-lhes a reconhecerem a santidade e a amar a verdade.
– Se o que lhes ensino é o que me foi revelado por Deus, em que é que eu pequei Governador?”
Perante estas palavras o Governador mandou acorrentar Paulo e conduzi-lo à prisão, onde deveria permanecer até que ele, Governador, o pudesse ouvir mais aprofundadamente.
Nessa noite, Tecla levantou-se, retirou a bracelete do seu antebraço e ofereceu-a ao porteiro do pátio da prisão, que assim lhe abriu a porta de entrada.
Dirigiu-se de seguida à prisão e ofereceu um espelho de prata ao carcereiro que deixou-a passar seguindo Tecla até à cela onde se encontrava Paulo.
Aí chegada, Tecla caíu aos pés de Paulo e aí permaneceu sentada ouvindo a palavra de Deus, começando a beijar as suas mãos e os seus pés.
Entretanto Tecla era procurada pelos da sua casa e pelo seu noivo Tamíris.
Crendo-a perdida, corriam as ruas atrás no seu encalço, quando um escravo, colega do porteiro, lhes disse que Tecla tinha saído durante a noite em direcção à prisão.
Foram então ter com o Porteiro da prisão que lhes disse ter Tecla ido encontrar-se com o estrangeiro, na sua cela. Seguindo a sua indicação foram encontrá-la como que acorrentada pelo amor.
Saíram da prisão e reuniram uma multidão que os acompanhou até ao governador a quem relataram o que tinha acontecido.
O Governador ordenou que fossem buscar Paulo e o apresentassem o Tribunal.
Tecla continuava enrolada em si mesma, no mesmo lugar onde estava Paulo, que ali, sentado no cárcere, a havia instruído. O governador ordenou que a trouxessem também ao Tribunal.
Tecla, cheia de alegria, partiu feliz. Nessa altura a multidão, ao ver Paulo, de novo gritou, ainda com mais violência:
“É um feiticeiro! Matem-no!”
No entanto, o governador escutava com prazer a descrição que Paulo lhe fazia das suas obras santas, após o que – e depois de reunir o conselho – mandou chamar Tecla e perguntou-lhe:
– “Porque é que não te casas com Tamíris, seguindo a lei do povo de Icónio?
Tecla continuava fixada em Paulo e naquele seu estado de deleite nada respondeu.
Perante isto a sua mãe clamou no seu grito chorado:
– “Queimem essa perversa; queimem essa inimiga do casamento no meio da arena, de forma a que todas as mulheres que tenham sido instruídas por este homem fiquem apavoradas e aprendam a lição.”
O governador, em evidente sofrimento, ordenou que Paulo fosse flagelado e expulso da cidade, condenando Tecla à fogueira. Após o que se levantou, dirigindo-se com a multidão para a arena, onde todos iriam contemplar a execução da sentença.
Tecla – como um cordeiro no deserto que olha para todos os lados à procura do seu pastor – procurava Paulo entre a multidão. Enquanto deslizava o seu olhar pela ela viu o Senhor sentado, à semelhança de Paulo e disse para si mesma:
– “Como se eu pudesse fraquejar, Paulo veio assistir.”
Fixava-o absorta no seu devaneio, quando o viu subir ao céu.
Entretanto, rapazes e raparigas tinham trazido lenha e palha para queimar Tecla. Quando trouxeram Tecla, nua, o governador chorava, admirando a beleza da força que irradiava nela.
Os funcionários acabaram com a compaixão, atearam o fogo e levaram-na para o topo da pira. Tecla benzeu-se e entrou no fogo. As chamas subiam altas sem que lhe tocassem.
Deus que é bom, comovido, fez soar um trovão subterrâneo e do alto dos céus surgiu uma nuvem carregada de chuva e granizo que inundou toda a arena que ficou mergulhada nas trevas.
Muitos correram perigo de vida, outros morreram, porém, o fogo foi extinto e Tecla salva.
Enquanto se produziam estes acontecimentos Paulo, amarelecido, abrigara-se, juntamente com Onesiphorus, seus filhos e mulher num sepulcro aberto, situado na estrada que liga Icónio a Dafne. Aí permaneceram durante três dias e três noites, em jejum e oração. Na terceira noite as crianças disseram a Paulo:
– “Temos fome”.
Ora, não tendo como comprar pão – porque Onesiphorus abandonara toda a sua fortuna e bens para seguir Paulo com toda a sua família – Paulo tirou o seu manto e disse-lhes:
– “Vai, meu filho e vende este manto, compra-nos pão e volta para o repartires com os teus irmãos”.
Quando ia comprar o pão o rapaz viu Tecla, a sua vizinha Estupefacto exclamou:
– “Oh Tecla, minha querida, tu estás viva!!! Onde é que vais?
Tecla respondeu-lhe:
– Estou à procura de Paulo, o apóstolo, porque Deus salvou-me do fogo.
Respondeu-lhe então o rapaz:
– “Vem comigo, eu levo-te até Paulo porque ele chora por ti, reza e jejua há três dias, pedindo a Deus que te salve”.
Chegados à tumba Paulo estava dobrado sobre os seus joelhos , rezava e dizia: “ Pai de Cristo, faz com que o fogo não toque em Tecla e avai em seu auxílio porque ela é só tua.”.
Tecla, que estava em pé imediatamente atrás de Paulo, exclamou:
– “Pai, que fizeste o céu e a terra, Pai do teu filho bem amado Jesus Cristo, eu te glorifico por me teres salvo do fogo e assim poder voltar a ver Paulo.”
E Paulo, que ao ouvi-la levantara-se, vendo-a disse:
– “Deus que conheces os corações, Pai Nosso Senhor Jesus Cristo, eu te glorifico por teres executado tão depressa o meu pedido e por me teres escutado.”
Reinava então no interior da tumba uma alegria afectuosa, Paulo, Onésiphprus e todos se regozijavam por Tecla ter sobrevivido.
Tinham cinco pães. Legumes e água, estavam todos encantados com as obras Santas de Cristo. Comeram e beberam então de acordo com a capacidade de cada um.
Tecla disse então a Paulo:
– “Quero que me cortes o cabelo e que me permitas seguir-te para qualquer parte onde vás proclamar as novas do Senhor.”
Paulo respondeu-lhe assim:
– “Vivemos tempos demoníacos e tu és uma mulher linda. Temo que mais males recaiam sobre ti, maiores ainda do que aqueles que já te aconteceram. Temo que tu não os consigas suportar e que venhas a perder a graça divina.
Respondeu Tecla:
– “Dá-me apenas o selo de Cristo e acredito que Deus não decepcionará a minha confiança nele e que o inimigo não conseguirá obter vitória sobre mim.
Disse-lhe Paulo.
– “Sê paciente e receberás a água.”
Decidiu então Paulo mandar Onesiphorus e sua família regressar a Icónio, enquanto que ele e Tecla seguiriam para a cidade de Antioquia.
Uma vez chegados a Antioquia, um Sírio de nome Alexandre, um dos primeiros da cidade, ao ver Tecla cobiçou-a imediatamente e para tê-la para si procurou Paulo oferendo-lhe em troca de Tecla presentes e dinheiro.
Paulo respondeu-lhe:
– “Não conheço a mulher de que me falas, ela não me pertence.”
Então, Alexandre, que era poderoso, agarrou Tecla na rua, que não suportou o abuso e disse-lhe alto e bom som:
– “Não sejas violento com o estrangeiro, não sejas violento comigo. Eu estou entre as primeiras de Icónio e foi porque não quis casar com Tamíris que foi expulsa da cidade.”
Desembaraçou-se de Alexandre, rasgou-lhe a túnica, mandou ao chão a coroa que este trazia na cabeça e chamou-lhe todos os nomes.
Ao ver-se publicamente humilhado por Tecla, Alexandre deteve-a e levou-a ao governador a quem apresentou queixa por tudo quanto esta lhe fizera.
Perguntou-lhe então o governador:
– “É verdade que fizeste tudo isto que acaba de ser relatado por Alexandre?”
Tecla confessou que o fizera, sem negar qualquer um dos factos de que a acusava Alexandre.
Ordenou então o Governador que Tecla fosse lançada às feras.
Quis então Alexandre oferecer um banquete à cidade, no dia da execução. O povo de Antioquia, porém estava chocado com o obscuro julgamento que o governador acabara de realizar.
Pediu Tecla ao governador que lhe permitisse manter-se pura, ante os olhos de todos, até que a lançassem às feras.
Entre os que estavam presentes encontrava-se uma das mulheres mais poderosas e ricas de Antióquia: Trifena.
Trifena, que tivera uma filha, de nome Falconia, que havia falecido, dirigiu-se ao governador e disse-lhe:
– “Entregue-me Tecla até que até que V. Senhoria me peça que a traga perante si.”
O Governador ordenou que entregassem Tecla a Trifena que a recebeu, partindo ambas.
Quando chegou o dia do banquete de Alexandre, foram buscar Tecla para a lançar às feras. Tecla abençoou Trifena que chorou por ela.
Quando chegou o momento da procissão dos animais selvagens, amarraram Tecla a uma leoa feroz, porém a leoa, levando Tecla sentada no seu dorso, lambia-lhe calmamente os pés, deixando todos estupefactos.
O letreiro da “acusação” dizia “Sacrilégio.”
Clamaram então as mulheres e as crianças, fora de si, contra a sentença, dizendo:
– “Oh Deus: uma enorme injustiça vai ser cometida nesta cidade.”
Terminado o desfile Trifena voltou a acolher Tecla. Nessa mesma noite Trifena sonhara que sua filha Falconia lhe tinha feito o seguinte pedido:
– “Mãe, tu darás o meu lugar à estrangeira abandonada, de forma a que ela reze por mim e eu passe para o lugar dos justos.”
Trifena, por sua vez, consumia-se em dor porque Tecla deveria na manhã seguinte ser lançada às feras, ao mesmo tempo que sentia por ela um amor tão grande como aquele que tinha pela sua falecida filha. Disse então a Tecla:
– “Tecla, minha segunda criança: Reza pela minha filha para que ela viva para sempre.”
Tecla, sem demora, elevou a voz e disse:
– “ Deus dos céus, Filho do Altíssimo, concede-lhe o que ela deseja; que a sua filha Falcónia viva na eternidade.”
Ouvindo estas palavras, Trifena arrepiava-se só com a ideia de tanta beleza ser deitada às bestas.
Quando amanheceu Alexandre veio buscar Tecla – uma vez que era ele quem oferecia o circo de feras – e disse:
– “O governador já está sentado e a multidão protesta de impaciência contra nós, temos de conduzir a condenada às feras.”
[continua e conclui no próximo nº do Caminhense]