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Sexta-Feira à tarde, Do Porto a Lausanne

No fim do ano 1999, já quase em 2000 e ao fim dos 12 meses de estágio de pós-graduação na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do Hospital de Santo António, o Prof. Octávio Cunha, diretor da mesma, convocou para Sexta-Feira à tarde uma reunião com todos os Assistentes e Internos, agradecendo a preferência de termos escolhido a sua Unidade, o nosso trabalho de longos meses e desejando boa sorte para o futuro profissional de cada um, tendo já no final deixado uma frase, discreta e quase de passagem:

– “Como sabem trabalhei muitos anos em Lausanne na Suíça (onde se formou e doutorou em Cuidados Intensivos Neonatais) e se algum de vocês quiser aprofundar esta área eu posso ajudar.”

Talvez por ser muito próximo ainda de um período longo de trabalho, que nesta área num Hospital Central é sempre exigente, com momentos muito marcantes, e por estarmos à beira de um fim de semana, ninguém na hora pareceu prestar grande atenção à frase e à disponibilidade do Professor.

A verdade é que, apesar de não fazer parte dos meus planos ir para além do prazo exigido para pós-graduação de sub-especialização, fixei a frase que foi ganhando dimensão com o tempo e decidi telefonar-lhe, aceitando a ajuda, tendo ele ficado de fazer contacto prévio com os Professoress Moessinger e Tolsa respetivamente diretor e vice diretor da referida Unidade, mas dizendo desde logo que apesar deste contacto, e por serem estágios muito procurados por colegas de todo o mundo, a calendarização podia ser, mesmo assim, algo demorada.

Ao fim de pouco mais de um mês estava a receber uma carta, informando dos documentos necessários para a autorização e da possibilidade de realizar o estágio no início de 2002…quase um ano e meio depois. Percebi que iria para um local e trabalho especial. Agradecido, aceitei e esperei.

Cheguei a Lausanne ao início da noite do dia 4 de Fevereiro 2002, e o que se seguiu foi um tempo de fantástica aprendizagem médica, técnica, social e cultural. Fiquei instalado na Residência Universitária que distava cerca de 300 metros da Unidade e de todo o Centro Hospitalar Universitário, num espaço de grande jardim, o que me permitia chegar com pontualidade às reuniões de serviço às 8.00h. Havia estagiários de 9 nacionalidades – Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Itália, Alemanha, Argélia, Grécia, Portugal e Suíça – e reuníamos segundo uma folha de atividades previamente colocada na sala, às 7.30h de segundas-feira.

I

Na última semana de Fevereiro, creio, entrou na reunião de serviço, cerca das 8.05h, uma colega nova, com ar oriental, muito bonita, bem vestida e maquilhada, sem bata. A pedido do Prof. Moessinger a reunião interrompeu-se para que ele mesmo a informasse de que deveria previamente ir ao vestiário, equipar-se com fato e bata da Unidade e estar às 8.00h na reunião, como todos, mas permitindo-lhe, no entanto, que ficasse na sala.

No dia seguinte, talvez pelas 8.03h, a cena repetiu-se e apesar de já corretamente vestida o Prof. de novo lhe lembrou que, como podia constatar, todos os médicos estavam já presentes, e que de novo interrompia a sessão, pedindo-lhe pois um esforço nesse sentido, uma vez que “ a reunião começara…às oito horas”!

Dia seguinte e de novo a colega não conseguiu estar senão depois da reunião começada, ainda que por breves instantes. O diretor apenas lhe disse que lhe queria falar em privado a seguir e relembrou-lhe a precariedade do seu estágio.

Entretanto, imediatamente a seguir ao final da reunião, esta colega abordou-me discretamente, perguntando-me se achava bem o que lhe estavam a fazer, e explicando-me que afinal vinha do centro da cidade, não sendo por isso fácil chegar às 8.00; que era de Genebra, tinha esperado muito por este estágio, não queria ficar hospedada na Residência, mas sim num hotel.

Eu fiquei sempre convencido de que efetivamente ela se levantaria muito mais cedo que todos nós, porque a perfeição com que se vestia, arranjava o cabelo e se maquilhava, devia demorar horas. No entanto, respondi-lhe que já estava há quase um mês no Serviço, achava que a Residência era ótima, permitia-me ser pontual e que durante esse tempo não tinha visto ninguém alguma vez chegar depois da reunião começar. E fomos para a Unidade.

Esse foi o último dia que a vi e até hoje não sei duas coisas:

O que se passou na conversa com o Prof. nessa Sexta-Feira à tarde, e se de facto o que eu lhe dissera fora o mais inteligente, porque posso sem querer, ter contribuído para que tenha sentido ainda mais falta de apoio.

A verdade é que de toda a equipa nem uma palavra houve sobre o assunto. A mensagem de Sexta-feira à tarde tinha sido silenciosa, mas absolutamente inequívoca para todos, aliás. Espero que não tenha mudado negativamente o rumo da sua vida, mas creio que era necessário ter ouvido as mensagens de quarta e quinta-feira, para que não se tivesse chegado à de sexta à tarde.

II

Também na enorme Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos no edifício central dos CHUV, para onde ia principalmente à noite ou aos sábados e domingos e sempre que me sobrava tempo, depois de devidamente autorizado pelo Diretor (dado o meu estágio autorizado ser apenas de Neonatologia), um episódio foi, para mim, marcante.

Uma das crianças internadas há já algum tempo e em estado grave devido a uma trombofilia (doença do sangue geradora de trombos), com etiologia desconhecida ainda e de investigação difícil, era filho de um casal português residente em Lausanne há cerca de 5 anos.

Uma noite acompanhei essa criança de ano e meio, ventilada, ao serviço de radiologia para uma ecografia de urgência, dada a suspeita de formação de novo trombo na bifurcação da veia ilíaca/femural, e o pai, adivinhando talvez a noite difícil conversou comigo o seu desespero de estar a ser tão difícil a descoberta duma causa para a doença numa unidade de um centro hospitalar reconhecido como de topo na Europa.

Respondi-lhe que a Unidade era de facto das melhores e que estava a ser feito tudo o que era possível, e que as doenças que aparentemente não se enquadravam em nenhuma das conhecidas eram de diagnóstico mais demorado, mas que também sabia que dificilmente havia melhor sítio para estar. Ficou mais sereno e fomos conversando inclusivamente sobre o sonho que o casal tinha de regressar a Portugal e montar um pequeno mercado, da satisfação de poderem falar com um clínico português, do meu sonho de ser maestro muito antes de ser médico, de futebol, do nosso país e terra (eram do Minho), queimando assim um tempo difícil de tão lento, nestes locais e nestas noites.

No dia seguinte, na passagem de serviço do turno de fim de tarde para noite, o diretor contra o que era habitual aquela hora, pediu reunião com todos e sempre em silêncio aguardou a apresentação da situação clínica de todas as crianças, até ao bebé do casal português, altura em que pediu para que fosse apresentada por uma colega australiana que lá estava também em estágio de pós-graduação.

No final, perguntou-lhe o que achava de todo o caso, tendo a colega respondido que apesar de ser algo muito complicado, tudo estava a ser feito corretamente e investigado clínica e laboratorialmente no Centro Universitário.

Então, perguntou-lhe, – porque respondeu aos Pais hoje na visita da manhã, que apenas estava aqui de passagem e não era responsável, quando lhe fizeram a mesma pergunta?

E a partir desse momento jamais vi um colega, diretor ou professor destratar tanto outro colega, sem levantar a voz é certo, mas com tal indignação e exasperação, no meio do mais absoluto silêncio de todos e de um choro compulsivo e soluçante da própria, durante minutos, sem que houvesse o mínimo esboço de contra-argumentação.

-“Jamais pode dizer a uns pais, perante um caso gravíssimo de um filho, que se está de passagem e que não se é responsável.”

-“Não pode ser profissional médica, muito menos de Intensivos Pediátricos”,

-“Nem conforto como pessoa foi capaz de oferecer ” e muito, muito mais, foi dito.

Não sei se com tal emoção, ambiente pesado e choro, a colega terá ouvido tudo o que lhe dissera o diretor. Eu ouvi, percebi que a conversa da noite fora do seu conhecimento, não era Sexta-feira à tarde, mas como esperado e óbvio, abandonou o estágio e não a vimos mais.

O Mundo em todo o lado tem regras e para onde formos devemos respeitá-las.

A Medicina tem protocolos, mas responsabilidades.

A Pediatria tem que ter sensibilidade afetiva.

Parece fácil, mas não é. A vida é bela, mas nem sempre.

Centro Hospitalar Universitário Vaudois Lausanne
Centro Hospitalar Universitário Vaudois – Lausanne

Arnaldo Botão Rego
[email protected]

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