Depois de Alexandre Coelho e Mariana Vergueiro terem tocado no inicio do ciclo de Jazz, que irá decorrer em Valença até Março, Renato Dias é o primeiro nome de Fevereiro. O Jornal C esteve à conversa com o músico para nos desvendar um pouco mais deste concerto previsto para o sábado dia 10, na Quinta do Caminho em Cerdal, com inicio previsto para as 21h30. A entrada é gratuita.
Jornal C – Quando se olha para o seu percurso de vida e de músico, percebemos que nem sempre foi uma linha recta, até ficar no jazz em finais da década passada. Sente-se mais completo por ter experimentado Engenharia Electrotécnica e Design de Comunicação antes de se tornar musico profissional?
Renato Dias – As rectas são geralmente monótonas, temos tendência para nelas acelerar e não usufruir dos pequenos pormenores e peculiaridades que a vida nos oferece. Entrar num curso superior aos 17 anos foi sobretudo um objectivo, não uma estratégia, com essa idade pouco se sabe do mundo e do que somos. Ao frequentar o curso de Engenharia Electrotécnica descobri pessoas diferentes, novas realidades mas mais importante, aquilo que eu não era. De modo que decidi mudar para Design de Comunicação nas Belas Artes do Porto, fiz provas e entrei. Pensei que estaria no melhor curso para conciliar com a minha já existente carreira musical. A verdade é que sou músico desde que me lembro, a minha primeira actuação foi com 7 anos numa festa de final de ano na escola primária (Externato Padre Cruz, em Matosinhos), onde fui o seleccionado para cantar um fado disfarçado de Alfredo Marceneiro. Não me recordo do que cantei, só de que riram bastante e aplaudiram efusivamente no final. Na altura que estudava nas Belas Artes já era músico profissional pelo que não era fácil conciliar as duas coisas mas pelo menos era um curso de vertente artística, já que só anos mais tarde é que abriu o curso de Jazz na ESMAE no qual me licenciei. De facto, nessa altura em Portugal o ensino superior estava confinado à Música Clássica e isso por si só eliminava qualquer ambição minha de obter um curso superior em Música. Sem dúvida que nas Belas Artes aprendi muito, por exemplo, a trabalhar com video, fotografia, design gráfico, tanto que pude criar capas de disco e video-clips para as bandas das quais fazia parte como foi o caso dos Grace e mais recentemente com o Renato Dias Trio, mas sobretudo, foi lá que desenvolvi o meu olhar crítico, a minha sensibilidade artística e estética, o respeito e a compreensão pela Arte em geral, filosofias e saberes que naturalmente transpus para a minha vida e música.
Jornal C – Essas passagens por bandas de pop/rock faz crescer uma certa concistencia como músico para quando se chega ao jazz a maturidade já estar no ponto de ser músico de jazz?
Renato Dias – Se aos 14 anos, que foi quando formei a minha primeira banda de rock com amigos, me tivessem dito que seria músico de jazz no futuro eu não teria acreditado. O que me moveu foi sempre o interesse e a paixão pela Música e essa curiosidade me levou aos 10 anos a pegar na viola do meu pai (uma guitarra clássica que ele trocou por uma bicicleta durante a guerra do Ultramar) e a aprender sozinho os primeiros acordes. Mais tarde vieram o cavaquinho e a viola braguesa só porque estavam ali ao lado da televisão, depois a guitarra elétrica e as bandas porque foram uma forma de exteriorizar as ideias e os sentimentos que para mim na adolescência eram dificeis de expressar por palavras. De facto a Música era uma linguagem e essa descoberta revelou-se uma aptidão sem a qual já não podia viver. Uma coisa levou à outra e o tocar em bandas de Rock, Pop, Reggae, Afrobeat, etc, foi um desenrolar natural de quem sempre quis aumentar o seu vocabulário musical, compreendê-lo para poder criar algo de novo e partilhá-lo entre amigos. Inevitavelmente que eu iria passar pelo Jazz já que as idiossincrasias de todos esses estilos musicais pelos quais me interessei se verificam cada vez mais fazer parte dele. A própria história do Jazz até aos nossos dias assim o comprova. Mas o que me seduziu no Jazz foi mesmo a liberdade, a oportunidade de interpretar uma canção de várias maneiras, e cada uma delas igualmente válida e verdadeira, coisa que de resto não é exclusiva do Jazz mas que é nele bem mais evidente. Ora liberdade requer a sua dose de maturidade, é assim na vida como na Música, maturidade essa que se ganha com anos de vivência musical, audição, prática, estudo e análise de muita e boa música seja de que estilo for ou qual o percurso musical percorrido.
Jornal C – Em 2017 lança “Suspiro” um disco (que) “visa conquistar ou reconquistar público na descoberta pelo prazer na audição do Jazz”. O público ainda anda de ouvido duro em relação ao jazz ou já começa a existir publico jazzistico?
Renato Dias – O disco “Suspiro” foi concebido para ser ouvido na integra e pela ordem numérica das músicas, como representação simbólica de um suspiro. Todos nós suspiramos por muitas razões diferentes e antagónicas na vida, seja por Amor, Saudade, frustação, etc e, apesar de alguns desses conceitos estarem ligados individualmente a cada um dos temas que compus, o disco, na sua totalidade é por si só um suspiro passível de ser interpretado ou sentido de várias maneiras, tantas quantas os ouvintes ou a imaginação os permitir. Lembro-me de quando me juntei com o Filipe Monteiro e o Filipe Teixeira para ensaiarmos e tocarmos estes temas, das conversas que tinhamos sobre o panorama jazzistico em Portugal, da sua evolução e de como certas coisas melhoraram enquanto que outras não. No que diz respeito ao público acho que o que tem vindo a crescer é sobretudo um certo tipo de tolerância e aceitação em relação ao Jazz, sem que isso se traduza numa verdadeira compreensão e entendimento do que está realmente a acontecer durante um concerto de Jazz. Aparentemente o crescente aparecimento de escolas de músicas com cursos de jazz por todo país contribuiria para um público cada vez mais esclarecido e interessado, o que de certo modo aconteceu mas é ainda uma minoria que está ali porque quer realmente ouvir a música, sendo que o mais preocupante é a incapacidade das pessoas viverem e usufruirem o momento, de estarem presentes, de prestarem atenção aos músicos por mais de 5 minutos sem que tenham que se refugiar nos seus telemóveis ao mínimo sinal de ansiedade, de tão exacerbadas e stressadas que andam com as suas vidas. Vive-se depressa, consumindo e descartando tudo e todos à nossa volta, reflexo de uma sociedade de consumo, alienada pelos media e da qual a música não é excepção. O “Suspiro” é também uma modesta reflexão sobre o que se passa na sociedade e na música nos tempos de hoje.
Jornal C – A conceituada Jazz.pt diz que “Este não é um disco triste ou “bluesy”, (…) não foi concebido para se ouvir em dias chuvosos.” Sente que existe alguma falta de batida ou mais funk no jazz Europeu?
Renato Dias – Na realidade, essa afirmação de que não é um disco triste e de que não foi concebido para ouvir em dias chuvosos não consta de nenhum texto de apresentação oficial do disco como foi descrito, e é ao que julgo ser, uma má interpretação por parte da Jazz.pt da crítica e recomendação feita no site norte-americano “Bird is the Worm”, em que aparentemente, aquando da audição do disco nesse dia, chovia… Não obstante, o disco tem sido muito bem aceite pela crítica nacional e internacional, sobretudo em França. O caráter intimista e introspectivo do disco é contrastante com a noção generalizada que se tem de um trio com guitarra, contrabaixo e bateria em qualquer parte do mundo e talvez isso tenha sido a pedrada no charco com que não se estava à espera. De qualquer modo o mais importante é ser capaz de expressar as minhas próprias ideias musicais em colaboração com os músicos que me acompanham, sem grande pretensiosismo, humildemente e o mais honestamente possível com aquilo que ouço na minha cabeça sabendo que cada um de nós tem a sua visão e interpretação das coisas. Primeiro de tudo, que a minha música seja uma extensão daquilo que sou, do que me identifica, penso ou sinto e é nisso que me foco quando a estou a criar, com a certeza porém, de que mal haja outras pessoas envolvidas, quer sejam músicos ou ouvintes, ela deixa de ser apenas minha. Hoje em dia o Jazz é tão diversificado não só na Europa mas em todo o mundo que talvez a única coisa de que sinto falta é alguma honestidade musical.
Jornal C – O que podemos esperar do concerto de Valença no próximo dia 10 de Fevereiro?
Renato Dias – Estamos ainda em fase de apresentação do disco tendo em conta que é um processo demoroso mesmo para um país tão pequeno como o nosso e onde a existência de associações como a Porta-Jazz é preciosa, no que diz respeito à dinamização e divulgação do jazz que se tem feito no Porto e não só. Assim sendo, tocaremos maioritariamente temas do “Suspiro” mas conto também apresentar alguns temas novos que o trio tem vindo a trabalhar. Cada concerto é especial, diferente, deveras intimista do ponto de vista musical, onde procuramos também divertir-nos para além da interpretação e da improvisação dos temas, com reacções do público bastante positivas e inesperadas até. Espero que as pessoas apreciem, se divirtam tanto como nós e que no final suspirem maioritariamente de satisfação.