Formado então por 19 freguesias, o concelho de Caminha apresentava-se muito diversificado nas suas gentes, ocupações e território ainda que que, à exceção da sede concelhia, a agricultura constituísse a base da economia. Frente ao litoral e ao rio Minho, concentravam-se as comunidades marítimas e ribeirinhas; numa segunda linha, as freguesias dos vales do Âncora e do Coura, terras onde a população masculina se deslocava em constantes migrações. E, por fim, na Serra d’Arga, as três freguesias serranas isoladas, de economia agro-pastoril.
O único hospital existente no concelho pertencia à Santa Casa da Misericórdia de Caminha, cuja número médio mensal de novos doentes girava, no ano de 1918, entre 4 e 15, conforme consta no seu Livro de Entradas.
Neste concelho, podemos verificar na que durante os meses de outubro e novembro, foi registado um volume elevado de óbitos, associado à ação da pandemia. No dia 1 de setembro, já entrava no Hospital o primeiro doente acometido de gripe, Constantino da Silva, 2º marinheiro, de 20 anos. Iniciava-se, oficialmente, nesta data, a gripe na sede concelhia.
Porém, em Vila Praia de Âncora, o contágio já se tinha iniciado em agosto. Os banhos terapêuticos eram muito frequentados por elites das grandes cidades portuguesas, particularmente de Lisboa, Guimarães, Braga e Porto.
Como já referimos, esta última cidade transformou-se num dos primeiros e principais focos da pandemia no país, durante a segunda vaga (Dias, 1919:49-50). Entre setembro e outubro, por sua vez, vinha a banhos o grupo abastado de lavradores e proprietários do Alto Minho, com calendário pautado pelas colheitas anuais. Assim, não é de estranhar que Vila Praia de Âncora se transformasse igualmente em importante foco de contágio e disseminação da pneumónica. De facto, vários jovens pescadores locais, banhistas e criadagem faleceram a partir 8 de setembro, por causa desconhecida. Em Paredes de Coura, sinalizava-se o vaivém de banhistas, mas no final do mês de setembro já nos chegavam relatos que da Praia d’Âncora regressam pessoas bastante doentes, algumas das quais já receberam a visita médica. Teremos por cá a maldita gripe que tantas vítimas tem feito em algumas terras?
Passou-se um mês e a pandemia já grassava em todo o concelho, sem que as autoridades sanitárias tivessem tomado qualquer precaução conhecida. Foi somente a partir de 15 de outubro e até ao dia 19 de dezembro, quando a situação já estava completamente fora de controle, que a entrada de pacientes no Hospital se cingiu exclusivamente a epidemiados de gripe pneumónica, totalizando 70 pacientes.
Podemos observar na Figura 2 o movimento de entrada de doentes no Hospital da Misericórdia entre 1916 e 1920 e verificar como, de facto, os meses de outubro a novembro de 1918, se destacam, de forma clara, durante o período de 5 anos.
A análise da Figura 3 reafirma a juventude dos doentes atacados pela gripe. Nos hospitais raramente eram admitidas crianças menores, sendo residuais os seus dados. Assim, a maior fatia percentual encontra-se na faixa etária entre os 20-29 anos de idade (32%), seguindo-se os grupos etários dos 30-39 (22,5%) e dos 10-19 anos (19.7%).
As ocupações dos indivíduos registados na mesma fonte hospital relacionam-se com setores sociais mais fragilizados, física e economicamente – marítimos (32,6%), criadagem (20,3%), e domésticas (21,6%) das quais desconhecemos a sua posição social.
Tomando como exemplo a freguesia de Vila Praia de Âncora (Rego, 2013:194-201; 369), a pneumónica correspondeu a uma crise de mortalidade de Grau 3: 63% dos falecidos pertenciam à comunidade marítima, 17% ligados a profissões de contágio (ferroviários, cocheiros, fiscais de alfândega), ou seja, 88% dos falecidos habitava a zona ribeirinha e apenas 12% a zona rural. A sua extrema pobreza era relatada na imprensa:
A epidemia continua na sua faina destruidora (…) não é sem dor que todos lamentam a miséria extrema a que é arrastada a pobre classe piscatória desta praia, que vê invadidos os seus humildes casebres pelo contagioso morbus, roubando-lhe os últimos ceitis que à custa de tantos sacrifícios a sua mão arrecadara para durante a época invernosa matar a fome a seus filhos! Afirmam-nos que algumas crianças estão já morrendo de fome.
O Provedor da Misericórdia de Caminha, Manuel Alves Pinto, a braços com uma pandemia jamais vista, somente a 8 de outubro deu início a um ciclo de telegramas trocados com o Presidente da República Sidónio Pais e várias Instituições de Saúde. Neles vai solicitando apoios e informando sobre a evolução da crise no hospital e concelho. No pico da pandemia, esta correspondência revela-nos em detalhe a desorientação oficial, o carácter tardio das medidas tomadas, o pânico das populações e, sobretudo, as fragilidades assistenciais existentes no concelho de Caminha.
8 de outubro – Presidente da República – Grassando nesta vila de Caminha e Concelho gripe e não tendo hospital recursos admissão doentes peço V. Ex.ª se digne contemplar este hospital de forma minorar sorte infeliz pobres Vossa Terra.
18 de Outubro – Delegação de Saúde. Porto – Adoeceu clínico hospital aqui estamos sem médico tratamento doentes bem como sem mostarda tanto hospital como farmácias.
21 de outubro – Presidente da República – A epidemia gripe alastra assustadoramente concelho, principalmente freguesias Seixas Gontinhães Moledo Cristelo onde nestas últimas 48 horas houve bastantes óbitos. Há falta de médicos (…). Os dois médicos que fazem serviço em Gontinhães não podem socorrer tantos doentes (…) ficando freguesias Lanhelas, Vilar Mouros, Seixas, Argela, Venade, Azevedo, Cristelo, Moledo, Vilarelho e Caminha entregues um único médico dando isso motivo morrerem bastantes epedemiados sem assistência médica. (…) pedimos V.Ex em nome desgraçados conterrâneos envie (…) Dr. Damião Lourenço Júnior, capitão médico miliciano (…) há necessidade absoluta e urgente dado incremento doença montar hospitais Seixas Gontinhães (…).
21 de Outubro – Delegação Saúde Porto – Peço remessa urgente para tratamento doentes graves e desinfeção medicamentos absolutamente necessários hospitais isolamento (…).
22 de Outubro – Comandante da Lancha canhoneira Rio Minho – Vai proceder-se (…) à hospitalização do maior número de epedimiados, mas encontra-se esta Misericórdia a braços com uma carência quase absoluta de pessoal (…) venho rogar a V.Exa. se digne informar-me (…) conseguir-se que o enfermeiro dessa lancha (…) nos prestar serviços permanentemente no hospital (…).
24 de Outubro – Presidente Républica – Misericórdia lutando grande falta recursos tem hospitalizado já muitos epidemiados única maneira combater doença que tende aumentar.
25 de Outubro – Presidente Républica – Epidemia alastra tendo se dado hoje até 10 horas muitos casos fatais. Médico Damião Lourenço conterrâneo ainda não chegou. Peço acelere sua vinda. Povo aterrorizado.
26 de Outubro – Presidente Républica – Doença continua alastrando casos gravidade que se espera todo momento desenlace. Vinda imediata Dr. Damião. Aldeias morrem sem assistência médica. (…) doentes hospital (…) internados grande quantidade alguma gravidade.
29 de Outubro – Presidente Républica – Epidemia alastra consideravelmente calculando-se haver só na vila para cima 500 casos sendo muitos com gravidade. Tem havido bastantes óbitos.
29 de Outubro – Presidente Républica – Encarecidamente e para bem dos desgraçados que se encontram atacados terrível epedemia e sem assistência médica peço ordem vinda referido médico. Moradores Rua dos Pescadores encontram-se quase todos atacados.
7 de novembro – Presidente da República – Não tenho informado V.Exa estado sanitário concelho devido ter estado doente. Epidemia continua alastrando principalmente freguesias Venade Lanhelas Seixas Argas. Vila parece manter-se estacionária se bem com bastantes casos graves. Hospital continua internando maior número possível doentes.
8 Novembro – Presidente República – Acaba retirar deste concelho médica Sarah Loureiro (…) muitas freguesias atacadas terrível epedimia não tendo tempo visitar maioria doentes. (…) Venho mais uma vez pedir seja mobilizado para aqui tenente médico António Manuel Xavier, actualmente Paço D’Arcos.
16 Novembro – Delegação de Saúde. Porto – Peço remessa imediata de soro antiséptico. Muitas crianças atacadas terrivel doença não havendo soro farmácias vila.
8 de Dezembro – Presidente República – Caminha felicita V.Exa. sair ileso criminoso atentado.
17 de Dezembro – Capitão Tenente António Paes – (…) expressão nosso protesto veemente e pesar profundíssimo pelo criminoso atentado que vitimou ilustre Chefe Nação e dedicado benemérito desta Sta Casa, Dr. Sidónio Pais, a quem muito devemos.
A Comissão angariadora de donativos para os pobres epidemiados e suas famílias, de Caminha e arredores, formada a 15 de outubro e composta por elites caminhenses, apresentou as listagens das famílias beneficiadas, o que, pela sua leitura, reitera que a ação da pneumónica atingiu sobremaneira as camadas mais pobres.
Constatada a face social pouco democrática da pandemia, de forma também pouco democrática atingiu geograficamente as diferentes freguesias do concelho. O obituário mostra-nos que ela afetou, numa primeira vaga, as freguesias do litoral – Vila Praia de Âncora, Moledo, Cristelo, Caminha e Seixas -, cavalgando depois, em finais de outubro e inícios de novembro, para os vales interiores. Alheias ao surto devido ao seu isolamento geográfico, ficaram as freguesias da Serra d’Arga e ainda Vile e Azevedo, de pequena dimensão. As duas freguesias mais fustigadas pela pandemia – Vila Praia de Âncora e Seixas – correspondem às duas maiores comunidades piscatórias. Tardiamente, segundo notícia de 17 de outubro, quando a pandemia atingia o auge em Viana do Castelo, o Subdelegado de Saúde dividiu o território em 5 zonas, afetando uma a cada médico e tornando público que o tratamento, transporte e farmácia dos pobres, eram agora gratuitos.
No jornal Correio do Minho, entre outubro e dezembro de 1918, os correspondentes por freguesias, assim como os de concelhos vizinhos, chamavam a atenção para a carestia de vida e insuficiência de bens essenciais, da péssima colheita de milho devido ao estio, do deficiente funcionamento do celeiro, da chegada de soldados de licença e a saída de outros para a frente da batalha ou mesmo para tratamento da epidemia no Hospital Militar de Viana do Castelo. Não faltam conselhos sobre xaropes para enfrentar a gripe, sabonetes para lavar as mãos. A falta de açúcar causava particular alarme.
Foram encontradas algumas alusões quanto à insalubridade de habitações, ruas e atividades. Chamou-se a atenção do administrador do concelho para que os lavradores não ponham nos campos patêlo sem enterrar, por causa do cheiro pestilento qua ainda pode causar outra epidemia (…). Em contracorrente, a redação do jornal desvalorizava os efeitos da pandemia no concelho, defendendo que só ocorreram 18 óbitos e que na maioria dos casos se trata apenas de gripe vulgar, que tratada a tempo, facilmente se debela. À noite, em quase todas as ruas da vila, o povo faz grandes fogueiras com ramos de eucalipto, o que parece ser um ótimo preservativo.
Contudo, nas edições de 24 e 31 de outubro, a narrativa jornalística já se alterava. A pandemia intensificou-se bastante no concelho, especialmente em Caminha e Seixas, tendo-se dado bastantes óbitos. Nota-se, sobretudo, uma grande falta de médicos, tendo já a Misericórdia solicitado (…) a vinda de um clínico. Os correspondentes passaram a elencar os finamentos e funerais, principalmente nas freguesias piscatórias e ribeirinhas, como no caso de Lanhelas que então já contava com 150 epidemiados, avultando sempre os jovens, muitos deles casados que deixavam órfãos. Enquanto em Vila Praia de Âncora e em Seixas a pandemia se mantinha acesa, noutras listavam-se gradualmente os convalescentes. Apesar deste panorama, as igrejas começavam a abrir-se aos fiéis, com pregações ou procissões de penitência.
Em Moledo, no declinar da pandemia, foi manifesta a consternação pelas vítimas da gripe, pandemia que deixou na orfandade muitas criancinhas. Bom será que a caridade pública as tome a seu cuidado (…). Aqui e ali vão surgindo histórias dolorosas do rasto da pneumónica, como a de duas moças irmãs que faleceram no mesmo dia em Vilar de Mouros. A pneumónica alastrava agora para o interior do concelho. Na edição de 21 de novembro, relatava-se que, apesar de haver alguns casos graves e bastantes doentes, não resta a mais pequena dúvida que o estado sanitário se apresenta com grande tendência para melhorar.
No início de novembro, reuniram-se os médicos e as instituições de saúde. Já tarde, foi decidido estabelecer um grande hospital para internamento de todos os epidemiados, requisitando-se para esse fim a casa que se julgar mais apropriada. Em Vila Praia de Âncora e em Seixas foram erguidos hospitais provisórios pela Cruz Vermelha, tendo chegado apoios do Presidente da República e da Assistência Pública. Quermesses, donativos oferecidos ao Hospital, distribuição de esmolas aos pobres vão sendo continuadamente comunicados. Nalgumas freguesias que ainda não dispunham de médico, era o pároco que propiciava os cuidados necessários, quer espirituais, quer de assistência medicamentosa, como aconteceu em Vilar de Mouros ou Argela.
A desorientação quanto à origem da pandemia e do novo morbus originava várias versões explicativas, destacando-se entre elas a falta de chuva e assim à hora em que escrevo chove regularmente; será com a chuva que os micróbios se extinguirão metendo-se pelo chão abaixo, donde nunca deveriam ter saído! Ultrapassada a grande pandemia que se abateu sobre o concelho, os correspondentes elaboraram listagens de defuntos por freguesias.