Há nas nossas vidas, vidas que passam e outras que nos marcam. Gente que num minuto nos faz viver ou perder um mês, seja entre os mais importantes e duradouros contactos ou nos mais breves e fugazes momentos.
Tive nos meus primeiros tempos de Faculdade de Medicina um colega absolutamente brilhante com quem partilhei alojamento.
J.P. era capaz dos mais imprevisíveis, abstratos e matemáticos raciocínios, bem como atitudes de memorização e inerentes conclusões filosóficas, não necessariamente por esta ordem.
Construía diálogos filosóficos substantivos do seu conhecimento e leitura de quase tudo exceto de Medicina, sem que isso o impedisse de ter das melhores classificações nos exames e testes.
Apesar de frequentemente apreciar estar só, senti sempre que não se importava com a minha presença, que aliás nunca lhe impus. Jantávamos na mesma cantina, estudávamos no mesmo café, tínhamos testes no mesmo dia, rivalizávamos em algumas notas e divertíamos com as derrotas e vitórias de um em relação ao outro.
Tivesse mantido esta genialidade em equilíbrio com a vida real e não sei onde poderia ter chegado, mas como isso é tão difícil para algumas destas mentes.
Uma noite acordou-nos com um grito absolutamente desesperado e mantido que pôs em alvoroço todo o prédio. Precisava de “o fazer” dizia!
Outra ocasião passámos por um casal de namorados e tentou ensinar ao rapaz como colocar os braços à volta da sua namorada. Em ambas as ocasiões foi necessário empenho para que tudo fosse entendido.
A chuva nunca o incomodava. Fazia parte dele, defendia.
Jogava xadrez de uma forma incompreensível; juntamente com um outro colega, colocávamos dois tabuleiros para jogar com ele que, de costas memorizava todas as jogadas fosse durante o tempo que fosse e ganhava-nos aos dois.
O seu interesse e curiosidade pelo que nos rodeava na vida quotidiana levou a que, numa noite de S. João, me obrigasse a ir com ele saltar numa enorme fogueira que era apenas também uma festa de S. João de ciganos num bairro perto de onde morávamos e que acabou por ser uma noite bem divertida.
Talvez por isso e no meio destas e outras situações que com ele partilhei, tivesse sido bem mais compreendido do que propriamente na elevada sociedade científica onde competíamos. Sempre juntos até ao ano em ficou para trás, vendo destruído todo o seu lógico intelecto porque discordou de uma classificação, pediu uma reavaliação, perdeu, não se conformou, abordou o Professor titular da cadeira, sem resultado, descobriu como poderia aborda-lo fora da Faculdade e a partir daí tudo se desmoronou. Não aceitou ajudas, isolou-se no seu mundo brilhante, clarividente e irreal.
Havendo entre nós uma amizade grande, mais firme era a diferença entre as respetivas convicções sobre a Ordem Natural e Superior para ele e Deus para mim que, concordávamos, regiam a criação e a existência humana.
Ofereceu-me por isso dois livros de Bertrand Russel, “Porque não sou Cristão” e “Os problemas da Filosofia” sendo que hoje estou convencido que ele sabia bem que o primeiro, bem lido e compreendido levaria mais facilmente ao cimentar da minha fé do que ao contrário como o título intuía e ele pensava. Uma profunda oferta tão explicável para quem o conhecesse.
Quando ao fim de semana um motorista o vinha buscar o J.P. sentava-se atrás, encostava-se de tal forma à esquerda do banco que quase o deixava de ver, reduzindo-se a um misterioso e superior insignificante ser.
Terminou o Curso depois de nós, mas era muito provavelmente o melhor de todos.
Arnaldo Botão Rego
