Quando iniciei a minha atividade profissional privada fi-lo numa Associação Humanitária de uma vila onde simultaneamente funcionavam outras associações sociais e recreativas.
Através da grande janela do gabinete podia ver um amplo espaço da praça central e não raramente contemplava as pessoas que iam passando.
Ao fim de algum tempo, às Sextas-feiras depois da hora de almoço, reparei que um menino dos seus 10-11 anos atravessava a praça, acompanhado (provavelmente) do seu Pai e entrava na porta da Associação ouvindo-se pouco depois, quase ao longe, um solfejar de notas musicais, cadenciado, dum suposto professor logo seguido de um iniciático, difícil mas persistente ensaio de repetição das mesmas notas pelo agora aluno, num exercício de pouco menos de uma hora.
Lembro-me de ter pensado: Ainda bem que alguém começa um ensino musical e não esquece o solfejo.
Assim se passaram algumas semanas, talvez meses, até que numa Sexta-feira, o menino
e o Pai traziam de companhia, pela mão deste, uma caixa onde se adivinhava um instrumento musical.
Entraram e pouco depois um som suave de saxofone já bem mais audível que o solfejo,
passeava, em escalas fáceis, por notas vagarosamente corridas, sem grandes tropeções.
Vai ser uma boa companhia de trabalho, pensei, já que o miúdo parece ter tido algumas
aulas!
Puro engano. Para quem tem na música algo absolutamente indispensável na vida, a segunda parte daquela aula de Sexta-feira foi o prelúdio do pesadelo. O que se ouvira fora tão só uns primeiros sons que o professor usara para exemplificar o que a seguir devia ser executado pelo aluno!
O que se seguiu foram sessões de massacre ao pobre saxofone, obrigado a emitir grunhidos roufenhos soprados por um jovem cuja força era diretamente proporcional à
desgraça final.
Quando após uma, duas, várias e intermináveis Sextas-feiras, depois do almoço eu
iniciava o meu trabalho, cheguei a “suplicar” a intervenção Divina para que o rapaz
pudesse faltar, por qualquer motivo, que não de saúde ou mais grave, mas faltasse, se esquecesse, fosse de férias fora de época, qualquer coisa, mas que não viesse.
O martírio era tal que equacionei mudar o dia da minha atividade, algo que por várias
razões se apresentava muito difícil para quem tinha a mesma organizada quase ao
minuto no seu dia a dia.
Dei por mim no absurdo de sofrer na viagem por antecipação. O que me esperava era, sem exagero, um sofrimento sem razão.
Acontece que o ser humano a quase tudo se habitua, e a tolerância foi também o meu
destino.
Mês após mês, sem me aperceber, o ruído transformou-se em presença suportável,
a seguir em companhia e então, em agradável som para no fim ser já de companheiro
desejado e indispensável.
O que mudara? O tempo. A música e a sua beleza na vida de uma criança que não desistiu,
a persistência de um professor que cumpriu com amizade o seu dever num Mundo que cada vez mais gera um fosso entre adultos e jovens, e o milagre do trabalho dos dois
numa bela ode à Arte.
Foram surgindo então momentos de tons lindos e suaves de um maravilhoso instrumento
como é o saxofone e o seu som, fosse em peças clássicas, fosse em trechos mais “agressivos” de rock ou ainda de coloridas marchas populares.
Assim quando ao fim de pouco mais de um ano o menino agora um adolescente quase
mais alto que o Pai, faltou numa Sexta-feira e depois outra, pensei que, como de outras
ocasiões, estivesse de férias e, na maior parte das vezes já sozinho, voltasse em Setembro. Não mais voltou e eu não fiz perguntas. Passaram 4-5 anos e nem o seu nome alguma vez soube. Não perguntei.
Provavelmente o avançar dos seus estudos, pensei, e senti então que saudade tinha aqui o seu lugar por falta do agora jovem do saxofone que se ouvia fosse dia quente, de muito frio ou de chuva torrencial, do entendimento musical entre os três, do cuidado do seu Pai, mas principalmente do seu som, patinho feio transformado em cisne.
Saudade de coisas tão normais quanto saudáveis, e que nos momentos mais simples nos
mostram como a vida é bela e que por vezes apenas temos de saber entender que o tempo
é, como alguém disse, o grande Mestre de aprendizagem, para grandes e pequenos.
Arnaldo Botão Rego
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