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Sexta-feira, 9 Maio, 2025
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Entrevista: “Um cão guia não é uma mascote”

Perdeu a visão depois dos  35 anos devido a um problema  de saúde e, a partir daí, quase tudo mudou na sua vida. Teve que reaprender quase tudo e adaptar-se à sua nova condição.
Não foi fácil, aliás foi até muito difícil mas depois de descer ao inferno, Isabel Varela conseguiu dar a volta por cima e hoje até consegue dar graças porque a sua incapacidade ensinou-lhe muita coisa.
Numa entrevista ao Jornal C, Isabel Varela partilhou experiências e dificuldades do seu dia a dia enquanto invisual e deu a conhecer o seu cão guia, uma cadela labrador que a conduz pelas ruas da vila caminhense, defendendo-a dos perigos e indicando-lhe o caminho que ela não consegue ver. No decorrer da conversa a entrevistada explicou que um cão guia “não é uma mascote” e deixou algumas dicas comportamentais para quem se cruza com ela na rua quando vai acompanhada do seu cão guia.
Falou ainda da cumplicidade existente entre as duas e a imensa gratidão que tem para com a sua amiga de 4 patas.

 

Jornal Caminhense (JC) – Isabel tu não nasceste invisual mas um problema de saúde atirou-te para esta condição. Imagino que a tua vida tenha mudado muito a partir de então.

Isabel Varela (IV) – Sim, de facto a minha vida mudou totalmente. Tive que parar, pensar e perceber que tinha que reestruturar toda a minha vida e perceber que aquilo que antes era deixou de ser. Tive que aprender praticamente tudo de novo mas hoje em dia posso-te dizer que estou imensamente grata pela aprendizagem porque no fundo foi uma oportunidade que a vida me deu.
Claro que uma coisa é uma pessoa nascer cega e nunca ter tido contato com a realidade visual, outra é perder-se a visão quando se tem 15 ou 18 anos e uma outra bem diferente é quando tu já tens toda a tua vida organizada e estruturada.

JC – E na tua opinião o que é mais difícil, nascer cego ou ficar cego mais tarde, depois de já teres tido a percepção daquilo que te rodeia. A adaptação é mais fácil ou mais difícil?

IV – Eu diria que depende e explico porquê. A verdade é que quem viu durante parte da sua vida e depois fica cego tem mais dificuldade em adaptar-se. Porquê? porque quando damos conta estamos a agir como se ainda víssemos e isso não pode ser. No meu caso concreto, tendo vivido grande parte da minha vida aqui na vila de Caminha, tenho uma memória visual de toda a vila. Conheço as ruas e sei para onde tenho que ir mas, com o passar do tempo, percebi que isto não era o suficiente e tive que recorrer a outros sentidos para conseguir ultrapassar os obstáculos que me pudessem surgir no meio do caminho. Quem vê foca-se essencialmente na visão mas quem não vê tem que utilizar os outros sentidos como é o caso do cheiro, do tato e do ouvido.
Eu quando vou na rua tenho que ir atenta ao som dos carros, às correntes de ar que me indicam que posso estar por exemplo num cruzamento ou a chegar ao local pretendido. Quando a pessoa já viu conjugar tudo isto torna-se difícil e é preciso aprender a utilizar os restantes sentidos em substituição da visão que já não se tem.
Daí que eu diga que por um lado o facto de já ter visto em determinadas alturas me ajuda, mas por vezes leva-me a querer fazer aquilo que já não consigo fazer.

JC – É verdade que um invisual tem os restantes sentidos mais apurados?

IV – Eu acho que efetivamente isso vai acontecendo com o tempo mas não é uma coisa imediata. Digamos que é outra aprendizagem que nós os invisuais temos que fazer e que com o decorrer do tempo já se faz de forma inconsciente.
Eu costumo dizer em jeito de brincadeira que fiz um treino em relação a isso. Eu recordo-me por exemplo de estar sentada no meio da rua, sozinha, fechar os olhos e tentar aperceber-me de todos os sons que me rodeavam. Este exercício é muito importante porque com o tempo dá-nos um background maior para aquilo que é o nosso dia a dia. Se estivemos a fazer este exercício ao pé de uma pessoa normovisual, verificamos que a percepção de sons captada por um invisual é totalmente distinta.

JC – Como foi passar para esta nova condição?

IV – Não te vou mentir, heróis só existem na banda desenhada e no cinema. A realidade passa a ser outra e como é obvio quando se trata de alguém que viu a maior parte da sua vida, ficar cega é um grande soco no estômago. Uma pessoa vai ao fundo do poço e baixa ao inferno.

JC – E quando se chega ao fundo do poço?

IV – Quando se bate no fundo só temos dois caminhos, ou ficamos lá, ou tentamos vir à tona e tentamos viver com esta condição da melhor forma. Quem me conhece sabe que não sou pessoa de desistir ou de me conformar e a determinada altura disse para mim que estava na hora de sair dali porque à minha volta havia uma vida para viver e um caminho a percorrer. Foi isso que fiz, comecei a aprender a viver com a minha nova condição. Estava cega mas não estava morta e por isso arregacei as mangas e comecei a aprender a viver com a condição de cega. Muitas vezes subi um degrau para depois descer dois mas nunca desisti e hoje costumo dizer que faço tudo o que fazia menos conduzir.
Voltando à questão inicial, não foi fácil mas aos poucos fui conseguido e atualmente estou imensamente grata por esta minha nova condição de pessoa cega porque houve toda uma aprendizagem que de outra forma nunca iria experimentar.

JC – Isabel pedia-te que partilhasses um pouco daquilo que é o teu dia a dia na rua. Quais são as principais dificuldades com que te deparas cada vez que tens que sair.

IV – Há várias situações distintas desde logo relacionadas com o comportamento dos normovisuais. Por um lado existem aquelas pessoas que pura e simplesmente passam indiferentes e na maioria das vezes não o fazem por mal, e temos uma outra situação em que as pessoas se prontificam para ajudar.
Em relação aos indiferentes sinceramente eu não condeno porque na maioria das vezes este tipo de comportamento tem a ver com o medo daquilo que é diferente. É normal ficarmos assustados ou sem saber o que fazer se estamos perante uma situação que desconhecemos. Isto é normal e faz com que as pessoas acabem por se afastar porque não sabem como ajudar. Cabe-nos a nós invisuais, desmistificar um pouco e dizer que ser cego não é nada do outro mundo, e que nós somos pessoas normais.
Depois temos aquelas pessoas que querem ajudar mas nem sempre o fazem da forma mais conveniente por desconhecimento. Também aqui nos cabe a nós explicar às pessoas como nos podem ajudar em caso de necessidade e a verdade é que por norma as pessoas entendem. Ninguém nasce ensinado e cabe-nos a nós fazer essa pedagogia, é nisso que eu acredito.

JC – Como é que tu te movimentas aqui em Caminha? É difícil, encontras muitos obstáculos? A vila está ou não adaptada para pessoas com incapacidade visual ou outras?

IV – Infelizmente Caminha não está preparada para pessoas como eu ou com outras limitações.
Enquanto utilizadora de bengala tive e tenho muitas vezes que ultrapassar obstáculos. Não me refiro apenas às barreiras arquitetónicas mas também a outras que são provocadas no dia a dia pelas pessoas. Estamos a falar de estacionamentos indevidos, ocupação da via pública, enfim uma série de situações.
Às vezes pensa-se em colocar por exemplo um vaso num determinado local mas nunca ninguém se lembra se isso vai ou não dificultar o movimento das pessoas com limitações visuais ou outras. Eu também tenho o direito de poder circular normalmente como as outras pessoas mas muitas vezes isso não acontece. É por isso que eu quero muito em breve fazer chegar a quem de direito estas dificuldades e vou fazê-lo. E deixa-me dizer só mais uma coisa em relação a este tema, por vezes não é preciso gastar muito para se fazer bem feito.

JC – Vamos agora falar um pouco da tua cadela guia, um labrador preto cujo nome não podemos revelar. Porquê Isabel?

IV – De facto não convém que as pessoas saibam o nome do meu cão guia porque o que pode acontecer é eu um dia ir a passar com ela na rua e as pessoas chamarem-na. É importante que as pessoas percebam que quando ela vai ao meu lado vai em trabalho, vai a guiar-me e qualquer distração pode ser complicado e até perigoso para mim. Eu sei que as pessoas quando me perguntam o nome dela não o fazem por mal, mas de facto há muito poucas pessoas que sabem o verdadeiro nome dela.

JC – Há quanto tempo é que ela está contigo?

IV – Esta minha amiga foi uma prenda de Natal e que deu por terminado um processo que eu já tinha iniciado há alguns anos e que por circunstâncias da minha vide a determinada altura tive que interromper.
Depois de retomar o processo, em dezembro do ano passado fui contatada pela escola, que me perguntou se eu estava preparada para ir buscar o meu cão guia dali a uns dias. Confesso que fiquei um pouco surpresa porque não estava à espera que fosse tão rápido porque é um processo longo e a questão da pandemia também não estava a ajudar.

JC – Ainda assim decidiste aceitar?

IV – Claro que sim, sem hesitar e no dia 7 de dezembro lá fui eu para Mortágua onde está localizada a única escola em Portugal que treina cães guias. Estive lá em estágio durante uma semana para conhecer esta minha amiga.
Depois dessa primeira semana de estágio em Mortágua, logo de seguida tive outra mas já aqui em Caminha, em que fui acompanhada por uma educadora que me avaliou.

JC – Há todo um processo de adaptação?

IV – Sim, o processo passa por uma adaptação que vai sendo avaliada. E eu até podia ter corrido o risco de não poder ficar com ela por falta de orientação ou mobilidade da minha parte para poder ser guiada pelo cão guia. A função da educadora é perceber se a dupla funciona e se não funcionar a escola não pensa duas vezes, pura e simplesmente não entrega o cão.
Só para se ter uma ideia do rigor do processo, eu tive a minha última avaliação há cerca de um mês. A educadora voltou a Caminha e finalmente disse-me que eu e o minha cadela tínhamos sido feitas uma para a outra.

JC – Também sentiste isso?

IV – Como sabes o labrador é já por si um cão extremamente afetuoso que gosta de se dar a conhecer. Vou contar-te um episódio e já se vai perceber este laço entre nós. No primeiro dia que eu a conheci, eu estava sentada numa sala lá da escola com mais gente e quando ela entra na sala, acompanhada da educadora, tu acreditas que a primeira pessoa a quem se dirigiu foi a mim. Foi incrível porque parecia que ela sabia que eu que estava ali à espera dela. Foi uma espécie de amor à primeira vista.
É evidente que ao longo destes meses tivemos dias melhores e dias piores mas também não nos podemos esquecer que é um animal. Ao princípio tivemos que nos adaptar e acho que neste momento estamos no bom caminho.
Por vezes as pessoas pensam que um cão guia é uma máquina que está programada para obedecer e não falhar. Nada mais errado, um cão guia também pode cometer falhar e isso acontece. Cabe-me a mim tentar perceber quando é que isso vai acontecer e ajuda-la a não cometer determinado tipo de erros e corrigir as suas falhas.
Repara há dias em que ela sai para trabalhar feliz e contente mas há outros que se percebe que o que ela queria era mesmo ficar em casa, tal como nós humanos.

JC – E como é que ela está hoje? Sentes que essa adaptação foi conseguida?

IV – Para ser sincera acho que ainda continuamos a aprender diariamente uma com a outra. Estamos muito melhor, houve uma evolução enorme desde dezembro, mas por vezes noto que ela ainda tenta fazer coisas que não devia porque está a trabalhar, mas é tudo normal.

JC – Como é que ela se comporta quando vê por exemplo outro cão na rua? Isso é um problema?

IV – Inicialmente quando ela ia na rua e se cruzava com outro cão ignorava completamente porque foi treinada para isso, aliás ela sabe que no momento em que eu lhe ponho o arnês ela vai trabalhar, vai guiar-me.
Perto da minha residência existem cães que são deixados pelos donos à solta e isso causa alguns problemas porque ela sem querer pode-se distrair, dar um puxão e fazer-me cair, e em último caso pode até ser atacada e ficarmos as duas em perigo.
Estas situações fazem com que ela cada vez que se cruza com outro animal na rua fique com uma atitude desconfiada. Eu tento corrigir este comportamento dando-lhe uma recompensa (um biscoito) quando ela me obedece.
Às vezes criam-se situações desnecessárias de perigo porque as pessoas não cumprem a lei e deixam os cães à solta.

JC – Que dicas gostavas de dar às pessoas que se cruzam contigo na rua para que não cometam erros?

IV – Antes de mais é preciso que as pessoas percebam que um cão guia não é uma mascote. É um cão de trabalho que tem a nobre missão de me guiar, de guiar os meus passos. Assim sendo as pessoas nunca se devem dirigir ao cão guia para fazer festas ou chamá-lo. Se as pessoas quiserem saber alguma coisa devem dirigir-se única e exclusivamente a mim. Eu tenho explicado isto às pessoas e elas entendem imediatamente. Também percebo que a maioria das vezes as situações acontecem por falta de informação e é por isso que eu tenho essa ação pedagógica.
O importante é que as pessoas percebam que quando o cão guia vai na rua está a trabalhar e as pessoas não devem dirigir-se a ela, mesmo que ela esteja relaxada comigo numa esplanada enquanto eu tomo um café.

JC – E em casa essa rigidez também se aplica?

IV – Digamos que em casa eu sou um pouco mais permissiva. Ela brinca com todos os membros da família e ela por exemplo adora a minha mãe. Eu acho que ela percebe que a minha mãe está mais debilitada e ela é muito protetora em relação a ela.
É incrível porque ela não foi treinada para isso mas acho que é instintivo.
Ela adora os meus sobrinhos e brinca muito com eles, aliás quando o mais novo vem a minha casa acho que ela se esquece de mim.

JC – Consideras o teu cão um membro da família?

IV – Não tenhas dúvidas disso. Aliás inicialmente uma das minhas grandes preocupações era e quando ela se reformar? Ela não vai poder trabalhar sempre os animais são como nós, ficam com problemas de articulações, com cataratas e um dia vão ter que se reformar. Agora não penso tanto mas quando isso acontecer só há dois caminhos: ou fico com ela e passa a cão mascote a 100 por cento e eu recebo outro para o substituir. Se eu não tiver capacidade para ter dois cães eu terei que me afastar dela. Enfim, não quero pensar muito nisso, ela tem 3 anos e espero que ainda possa ficar muito tempo com ela.

JC – Tu adoras a tua cadela.

IV – Nem imaginas o sentimento de gratidão que eu tenho em relação a ela e todos os dias, com pequenos gestos de carinho, eu agradeço toda a atenção que ela tem comigo. Só quem passa por isso é que consegue perceber, é uma relação inexplicável e difícil de traduzir em palavras.

ser amigo de um cão guia

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