A Democracia de um país, tendo um caminho a percorrer, tal como um camião pesado na estrada, nunca está totalmente a salvo de sobressaltos. Ninguém poderá garantir a impossibilidade de qualquer acidente, mais ou menos grave, e toda a atenção é necessária no trajeto.
Neste pressuposto há quem defenda que se ao longo deste percurso, surgir um ou outro problema, tal até poderá ser útil, se com isso aprendermos a evitá-lo no futuro.
Talvez Portugal tenha necessidade de passar pelo sobressalto destas últimas eleições legislativas de 2025. Em poucos dias fomos ouvindo análises, interpretações, conclusões e entre tudo isto os juízos de valor ditados sobre a qualidade que alguns partidos trazem ou não (à democracia), não se justificam.
Democracia e Liberdade estão tão intrinsecamente ligadas que não existe esta sem aquela. Todos sabemos que houve partidos fundadores do pós 25 de Abril, mas o tal percurso democrático faz-se de acertos, dúvidas, erros, avanços e recuos. Chama-se a isso História e a tolerância que um País apresentar aos desvios, a análise que fizer aos erros e a atitude que tomar para corrigir ambos, medirá sem dúvida a qualidade dessa mesma democracia.
No entanto, na política não podem existir apenas as verdades democráticas de um lado e os erros ditatoriais do outro e, de parte a parte, foi esse o espírito estreito de consciência que limitou um pensamento estruturado do eleitor, levando-o a uma análise redutora da atividade política e dos políticos.
Já não é nada fácil haver disponibilidade e abertura para ler conteúdos programáticos de outro partido, quantos mais aceitação e diálogo, se aí forem encontradas ideias válidas. Muito menos o seria com a crispação que existiu.
Consideram-se à partida erradas e recusam-se liminarmente iniciativas inteligentes e válidas, apenas porque tem um “carimbo ideológico” que não o nosso.
A existência de tabiques estanques e por arrasto não dialogantes entre ideologias e o seguidismo que lhe é inerente, prejudica o indivíduo em prol de um coletivo, ou seja, a liberdade individual em prol do partido, prejudicando-se assim um e outro.
A prova de como se confundiu o acessório com o essencial nesta campanha é-nos dada, por exemplo, pela total ausência de dois temas; Cultura e Ciência, sobre os quais quase não houve uma palavra.
A Cultura é o recreio de uma nação e a Ciência a sua sala de aulas. Como pode uma nação aprender a ser feliz sem aulas e sem recreio, ainda por cima gastando o seu tempo de diálogo e formação num ringue de boxe?
Do Iluminismo do século XVIII e em parte precursor da Revolução Francesa chegou até hoje um dos mais belos princípios de tolerância e democracia sintetizada na máxima de Voltaire:
“Discordo em absoluto de tudo o que dizes mas lutarei até à morte para que tenhas o direito de o dizer!”
Os meus dois melhores amigos, um da escola primária e outro da faculdade, são de ideologias políticas diferentes da minha sendo que, não raramente, tenho necessidade de os ouvir e a amizade jamais seria por isso colocada em causa, pelo contrário, é reforçada pelo benefício de os escutar, inteligentes e esclarecidos que os considero.
A capacidade de ouvir e aceitar opiniões diferentes e discordando, “lutarmos” pelas nossas, só nos enriquece e pode até conduzir a mudanças de perspetivas, até mais corretas, sem que isso de todo nos menorize.
As posições políticas irredutíveis e conflituosas a que a nação assistiu durante estas semanas e até nos dias seguintes aos resultados eleitorais, desceu bem abaixo da urbanidade mínima exigível.
Até porque os eleitores na prática pouco direito de escolha tiveram, e a maior parte não saberia dizer quem era o 3.º ou 4.º candidato pelo partido na lista do seu distrito. Estes ao serem escolhidos pelo partido, já sabem antecipadamente, salvo hecatombes inesperadas, se vão ou não ser eleitos.
Assim, eu preferia votar em alguém que verdadeiramente me representasse e não fosse escolha exclusiva do partido. Tudo seria mais verdadeiramente…representativo.
Bem sei que ser titular de cargos públicos não é fácil e aí incluo qualquer cargo e qualquer força política. É necessário abdicar da vida pessoal e preparar-se para estar sempre sujeito a críticas, quantas vezes injustas e infundadas, quando não insultuosas e indignas. Mas repito, transformar esse palco e por vezes pedestal político para amplificar raivas e frustrações através de desrespeito e mera falta de formação, infetando assim o meio social e político num exercício gratuito de exibicionismo, é atitude menor.
A Democracia em Portugal ganhou, a custo, o caminho que é hoje sinónimo de Liberdade, os seus condutores e lutadores são bem conhecidos e estão justamente aos comandos dessa missão, desde Abril de 1974. Sabemos quem são e sabemos que apesar de alguns erros e acertos conduziram ao país de hoje, bem melhor do que o de então.
Foram, no entanto, esses condutores, que desta vez, levaram longe demais as questiúnculas pessoais, esqueceram o deste país que conduziam e que mesmo nos retrovisores da democracia a lembrar que Abril de 1974 foi só há 50 anos se distraíram fatalmente. Mesmo nos retrovisores bem limpos e calibrados há neles ângulos mortos, permitindo destes acidentes democráticos, do qual ainda é muito cedo para se fazerem balanços.
Como disse, talvez este seja, hoje, um sobressalto necessário para que no futuro estejamos todos mais atentos, evitando que tal se repita. Falta é saber se ainda iremos a tempo.
Arnaldo Botão Rego
arnaldorego@gmail.com




