Continuação do artigo publicado em 2021.09.11
Caros Leitores, continuo hoje a escrever para falar de mim. Uma experiência vivida na primeira pessoa-Eu! No exercício de funções fui infectado com o “vírus SARS-CoV-2, tal como tantos outros Profissionais de Saúde, quer em Portugal, quer no Mundo.
Houve dias de dolorosas experiências…
Durante esta luta e resistência, só me lembrava que ainda era novo para partir, ia deixar as pessoas que mais amo para sempre – a minha Esposa, os meus Filhos, os meus Pais e o meu Irmão. Muitos Colegas estiveram presentes nestes pensamentos de despedida e de angústia. Tinha ainda tanto para viver e merecia viver mais!
Mas… a vida deu-me uma segunda oportunidade. Para além dos saberes da ciência e da medicina, uma força maior e divina esteve ao meu lado, com certeza, que me manteve vivo! Eu acredito nesta força divina!
A vivência nos Cuidados Intensivos e nos outros Serviços da ULSAM, neste internamento, obrigou-me a dar outro valor ao tempo, à noção do tempo e à vida. Um tempo mais demorado, mais marcado. Tudo passa a ser importante. O risco presente e vivido de se morrer, faz-nos estabelecer prioridades, relativizar muitas coisas e vontade de viver cada momento diferente, experiência ou situação, junto de quem amamos e queremos, com um sabor e prazer diferentes. E há tanta coisa boa para viver e desfrutar, e que na nossa correria desenfreada do dia-a-dia, nem notamos nem damos valor.
Nesta difícil e horrenda experiência, o MEDO, algo impessoal, invisível, abstrato, mas que marcou presença e que se fez sentir e me fez perceber a sua dimensão nociva e aterradora, nas suas variadas formas – obrigou-me a pensar muito e a temer sempre o pior! À pergunta se tive medo de morrer? Respondo: Sim tive! Tive muito, muito medo de morrer. E mais medo de morrer sem ter a oportunidade de me despedir de ninguém… de quem mais amo…de quem queria dizer… até um dia na imensidão… ou no céu para os crentes!
Os dias de internamento foram passando, perdendo-se a noção do tempo, se é noite ou dia. A frescura e brancura dos lençóis da cama acolhiam o meu corpo com toda a suavidade, diminuindo o impacto do mergulho da solidão de uma cama hospitalar e as dores esqueléticas que o vírus me impunha. Alguma orientação, em função das refeições, de resto, tudo é abstrato, distante, impessoal por estarmos entre paredes de vidro, isolados, na solidão dos “pis pis” das máquinas que me monitorizavam, mas sempre vigiado pelo olhar dos incansáveis Enfermeiros de turno! Algo de bom que sentia, era quando algum Profissional de Saúde, muito frequentemente me vinha “visitar”, perguntar como estava, se precisa de algo, ou dar “notícias” sobre a evolução, principalmente, após as gasimetrias.
A hora da higiene, pela manhã, era boa, porque apesar de impossibilitado de o fazer, os Colegas Enfermeiros proporcionavam o banho no leito, cama mudada, reposicionamento do corpo, e a preocupação sempre presente para proporcionar conforto físico e psíquico. Impossibilitado de me barbear, uma Colega Enfermeira, dedicou-me alguns minutos, ao barbear-me e oferecendo-me esse conforto. Todos os Profissionais extremosos e preocupados com o meu bem-estar, físico, emocional e o equilíbrio bio e psíquico.
A máscara facial de ventilação mecânica não invasiva de oxigenoterapia, “eterna companheira” destes dias dolorosos, não podia ser retirada! Apenas substituída por cânula nasal de alto fluxo, e rapidamente, por cânulas bi-nasais, quando chegava a hora da refeição. As saturações de oxigênio caíam rapidamente ao esforço com as mobilizações e posicionamentos para tomar as refeições. Após a ingestão dos alimentos, era imperativo o recolocar da máscara, sempre muito bem adaptada!
Percebia, nas rotinas, quando havia necessidade de fazer alguma punção para a gasimetria arterial, uma vez que a punção central, já se tinha perdido, por exteriorização do cateter, ao fim de alguns dias. A esperança estava sempre presente, quando este sangue arterial agora colhido, me trouxesse boas notícias e de evolução. No princípio muito poucas vezes aconteceu. Na maior parte, resultados eram estáveis, perto da linha d’água (da vida ou da morte). Às vezes sim, boas notícias, as saturações tinham melhorado 1%, 5%, 15%. Que alegria! A esperança renascia! E assim foram 11 dias nos Cuidados Intensivos.
Chegou o dia de alta da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) e transferência para os Cuidados Continuados/Intermédios, na Unidade de Covid da medicina 8. Que alegria! Mas o receio de regressão e voltar à UCI estava presente, também. Transferido no leito, com oxigênio ligado e vigilância. Sensação diferente à que vivi, quando da Medicina Crítica da Urgência, fui transferido para a UCI.
A estadia neste serviço (piso 8), onde já tinha estado antes de descer à Urgência e depois aos Intensivos, tinha agora, “outro sabor”. Um passo grande de recuperação, embora ainda, num percurso sinuoso a exigir muita vigilância e cautelas. Estar no leito, mas poder olhar pela janela da enfermaria e perceber o dia e a noite, o nascer do dia e o acaso, poder ver o mar, a entrada e saída de barcos de recreio, de pesca artesanal e mercantes, era uma coisa indiscritível. As gaivotas que nos visitavam e pousavam no parapeito das janelas, pelo exterior. Coisas comuns, que agora tinham um espírito especial.
Coisas pequenas, mas extraordinárias foram acontecendo. A elevação do leito, o levante para o cadeirão, o banho na cadeira de rodas e por fim duche com ida e vinda pelo próprio pé e o tomar as refeições na mesa da enfermaria. Tanta conquista, já, que me emocionava e que me dava forças para lutar e continuar a viver.
O contacto com os Familiares e exterior, só por via telemóvel ou telefone. Não havia visitas!
Mais um serviço e Equipas de excelência, onde para além dos cuidados de saúde prestados, a simpatia e afecto humano se faziam sentir. A preocupação para que o conforto e o bem-estar estivessem sempre presentes, era uma constante. Profissionais de fino recorte na excelência do desempenho.
A Equipa de Enfermagem, apesar de desfalcada, estava sempre presente e dava resposta a todas as solicitações dos doentes graves e menos graves. A Equipa Médica respondia a todas as solicitações. Os Assistentes operacionais complementavam todos os cuidados, necessidades e solicitações, dentro das suas competências. Outras especialidades disseram presente e fizeram o acompanhamento: Fisioterapia/Cinesiterapia, Nutrição.
Os dias foram passando. A bateria de exames, análises e gasimetrias eram diárias. Nada podia faltar e não faltava, mesmo!
Se durante o dia se via a azáfama dos Profissionais, particularmente dos Enfermeiros, a tratar dos doentes, altas e admissões, tudo se complicava no turno da tarde e noite com a Equipa mais reduzida, mas uma intensidade de trabalho brutal. Mas o sorriso, a competência, o conhecimento científico, o olhar atento e clínico para o não-verbal dos doentes, era/é uma característica destes heróis, apesar dos semblantes de cansaço, das “olheiras” e de muitos quilómetros nas pernas, durante os turnos.
Há gestos que jamais podemos esquecer. A Enfermeira Gestora deste Serviço, minha Colega da Especialidade, tinha sempre um gesto de muito carinho, um miminho permanente: o envio de um café pós refeição do almoço. E no dia da alta hospitalar, o especial café vinha acompanhado por dois bolos húngaros, que a Colega tinha comprado na pastelaria, logo pela manhã, expressamente para mim.
Cá fora as preocupações com o meu estado de saúde eram muitas. Os Colegas da minha Unidade de Saúde, das diferentes classes profissionais, disseram sempre presente. Os meus Colegas mais velhos com quem trabalhei e trabalho, fizeram uma corrente de fé, orações e de energia positiva, por mim. Muitas e muitas pessoas telefonaram à minha Esposa, aos meus Pais, a inteirarem-se do meu estado de saúde. A TODOS, estou-lhes muito grato. Não posso esquecer ninguém!
No dia da alta hospitalar, ver o meu filho mais velho na portaria do hospital para me trazer para casa, foi uma sensação indiscritível. Voltar a ver aqueles olhos de diamante, com a cor do doce mel, foi fabuloso. Voltar a ver os meus Pais, embora à distância, prevenindo riscos desnecessários, a minha casa e sentir o abraço dos meus Filhos e Esposa, foi/é extraordinário e difícil de explicar. Ainda hoje o é! Muita emoção junta, muitas sensações únicas! Fazer o trajecto de regresso a casa, olhando e sentindo o mar, voltar a “viver o nosso espaço”, não são traduzíveis em palavras!
Humberto Domingues
Enf. Especialista Saúde Comunitária
2021.09.21