Acabou de se comemorar o 25 de Novembro. Aconteceram há poucas semanas, as “Eleições Autárquicas 2025”. Talvez o patamar político, onde a alternância democrática se verifica e mais se sente. Onde castelos se julgavam “indesmontáveis”, caiem e levam consigo vaidades intermináveis, humildades aproveitadoras e ocos estatutos. E talvez por isso, a Democracia na sua “ferocidade”, na sua “clarividência e crueldade serena” e numa justiça fria, impõe-se pela expressão do voto. Quem nela ascende julgando-se insubstituível comete o erro mais elementar de confundir o poder que exerce com a fonte que o concede. A Democracia não pertence a ninguém, e todos pertencem a ela apenas enquanto servem.
Os que se julgam eternos no trono (políticos, líderes, tecnocratas, até salvadores), esquecem que a Democracia vive do desgaste, da alternância, do contraste de ideias e projectos. Ela é uma máquina que se alimenta da substituição. Substituir é o seu instinto natural, o seu modo de garantir que nenhum Homem, por mais brilhante ou popular que seja, possa transformar-se em dono do destino coletivo. Ela não perdoa os que se apoderam e se julgam donos dela.
O erro dos autointitulados indispensáveis é confundir influência com necessidade. Julgam que o país, a região, o concelho, o partido, ou a história desabarão sem a sua presença. Apresentam-se como salvadores, tratam a sua vitória como um baptismo divino e acreditam que o país ou qualquer concelho ou região, gira ao redor da sua vontade. Esquecem, porém, que a Democracia é um sistema que não tolera idolatrias. Esquece depressa os nomes, mas nunca o princípio de que, ninguém está acima da regra, ninguém é maior do que o voto, ninguém é insubstituível.
E quando um desses “insubstituíveis” tenta desafiar a lei da alternância, seja agarrando-se ao cargo, manipulando o discurso ou cultivando a idolatria das massas, a Democracia decide corrigir, fá-lo com frieza e precisão cirúrgica. Expulsa os vaidosos, varre os prepotentes, e arquiva os nomes que outrora julgavam-se eternos. Reage como um organismo que rejeita o corpo estranho. Expulsa-o com o mesmo rigor com que um sistema imunológico elimina o vírus que ameaça o equilíbrio. É uma purga lenta, às vezes dolorosa, mas inevitável. Ela não ama, não venera, não chora. O povo pode aplaudir, mas o “sistema observa”. E no instante em que o “Servidor” se confunde com o “Senhor”, a Democracia faz o que tem de ser feito, destrona-o, esquece-o e segue adiante. Porque mais importante do que qualquer rosto é a permanência do princípio, esse pacto silencioso de que ninguém é dono do amanhã. E quem confunde mandato com posse, quem se acha indispensável à história, cedo ou tarde é corrigido pela força silenciosa do voto e pela frieza da memória coletiva.
Ela vive da renovação, do conflito e da substituição. O político que nela permanece demasiado tempo começa a apodrecer dentro dela. A Democracia é feita para que ninguém se eternize. Não é por virtude, é por sobrevivência. Porque todo o poder prolongado demais deforma-se, e todo o líder que se julga essencial transforma-se, inevitavelmente, em ameaça.
O voto que elege é o mesmo que destrona. A popularidade que embriaga é a mesma que, no dia seguinte, vira indiferença. O povo, quando farto, não hesita, troca, varre, esquece. E é nesse esquecimento que reside a força da Democracia. Ela não precisa odiar para punir. Basta seguir o seu curso natural, o da substituição. E é muito comum, entre os que se julgam insubstituíveis, confundirem autoridade com propriedade. Um líder cai, outro surge, e a vida continua porque o essencial não é quem manda, mas o facto de que pode ser trocado.
Muitos destes “insubstituíveis” acreditam que a máquina do Estado lhes deve lealdade, que o partido lhes pertence, que o povo lhes deve gratidão. Mas a Democracia não deve gratidão a ninguém. Ela é/será o regime da ingratidão institucionalizada e é isso que a torna invencível. Quando chega a hora, não há título, carisma ou legado que salve.
É um sistema impiedoso, sim mas é essa impiedade, que garante a liberdade. Por isso, aos que hoje se olham ao espelho e se veem como indispensáveis, convém lembrar que ninguém é maior do que o voto, ninguém é dono da vontade popular. A Democracia pode ser lenta, mas nunca é cega e, no fim, ela cobra a conta de todos.
Como é implacável a Democracia. Pode tolerar o ego por um tempo, mas nunca o substituirá pela servidão. Quem nela entra pensando ser eterno, nela morre politicamente e sem epitáfio.
Humberto Domingues
Mestre em Sociologia da Saúde



